Além da necessidade de razoabilidade e proporcionalidade quando do estabelecimento de qualquer elemento discriminador em editais, o ministro relator Luiz Fux ressaltou a especial relação entre a liberdade de se tatuar e a proteção à liberdade de expressão. Nesse sentido, a tatuagem é uma marca corporal voluntária e é potencial veículo de ideias, críticas, contestações e, portanto, resguarda estreita relação com a liberdade de pensamento e com a forma do ser humano se posicionar no mundo. Assim, a decisão de tatuar-se ou não é resguardada à esfera íntima de cada pessoa e não pode o Estado interferir, sob pena de estar desrespeitando a garantia constitucional da livre circulação de ideias. A única exceção a essa liberdade foi feita para símbolos tatuados que transmitam mensagens que incitem o crime e a violência, reproduzam discurso de ódio, que profanem ideias discriminatórias, ou mesmo que veiculem imagens obscenas. Em suma, a Corte reforça o valor da liberdade de expressão e do livre pensamento, mas com as limitações. Para o ministro Fux, se a lei não autoriza discriminações deste gênero, não poderia o edital fazê-lo.
No caso concreto, impedir o candidato a soldado da Polícia Militar (corpo de bombeiros) do Estado de São Paulo a participar do concurso público pela existência de uma tatuagem seria símbolo de um anacronismo social e cultural. Único vencido, o ministro Marco Aurélio votou pelo não provimento do recurso. Para ele, o edital do concurso em questão estava suficientemente claro em sua vedação, e sendo a disciplina um valor militar importante, o candidato teria violado desde já os valores da carreira.
Apesar de um caso bastante simples em termos de garantias constitucionais, seja pela argumentação de um cuidado especial com o preceito da isonomia, seja pelo resguardo da liberdade de expressão e de pensamento, vê-se ainda resistência de determinados tribunais de instâncias inferiores em consentir com essa liberdade pertencente à esfera íntima de cada cidadão. Da mesma forma, não são poucos os editais de concursos públicos que desrespeitam a isonomia e a proporcionalidade ao criarem elementos discriminatórios sem respaldo constitucional. Essa decisão do Supremo, com repercussão geral, deve alterar a forma como o Poder Público e os tribunais enfrentam essa questão.
Lívia Gil Guimarães, pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP.
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