A covid-19 expôs como nunca a dependência do brasileiro ao Sistema Único de Saúde. Aproximadamente 75% da população, ou 150 milhões de pessoas, é atendida, hoje, exclusivamente pelo SUS. Em 2020, a aprovação no Congresso do “orçamento de guerra” possibilitou incremento inédito de R$ 38 bilhões ao sistema, acompanhado de um esforço financeiro de Estados e municípios. Mas, passados mais de dois anos desse gasto recorde, o SUS permanece praticamente do mesmo tamanho. Os desafios e as demandas, porém, só crescem.
Com a redução do número de mortos e infectados pelo coronavírus, a pressão sobre a rede pública não tem sido observada mais na porta de hospitais, mas na atenção primária, cuja estrutura, com raras exceções, ficou estagnada nos últimos dois anos. Resultado, segundo analistas, da opção de se investir em uma rede provisória, como observado nos hospitais de campanha e na compra de leitos privados, conjugada com a falta de coordenação federal no repasse de verbas.
As filas para consultas com especialistas, exames de prevenção e marcação de cirurgias eletivas, que já representavam um dos gargalos do sistema, se somam agora às novas exigências de tratamento relacionadas à chamada covid longa, como a demanda por serviços de saúde mental. E também nesta área houve estagnação – o número de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) até cresceu entre 2019 e 2021, mas apenas 4,8%, segundo o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES).
As estatísticas da rede municipal de saúde de São Paulo mostram o tamanho do desafio e da desigualdade no atendimento. Na média, enquanto moradores do Limão, bairro na zona norte da capital, ou de Perdizes, na zona oeste, aguardam de sete a 14 dias para conseguir consulta com um psiquiatra, os cidadãos que vivem nos extremos levam quase um ano. É o caso, por exemplo, de quem vive em São Domingos, na região noroeste. No distrito localizado entre as rodovias Anhanguera e Bandeirantes, a espera é de até 343 dias, segundo o Mapa da Desigualdade publicado todos os anos pela Rede Nossa São Paulo.
Responsável por tabular os dados relativos ao tamanho do SUS, a professora Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que também postos de saúde, laboratórios e serviços de telemedicina mantiveram a estrutura pré-pandemia. E o quadro se agrava porque o Programa Saúde da Família (PSF), que cobre 63% da população, foi reduzido em um movimento já anterior à crise sanitária, com mudanças nas regras de pagamento das equipes.
“O que se percebe é que a pandemia no Brasil não funcionou como um vetor capaz de alterar o ritmo de expansão do sistema público, como ocorreu em outros países. O SUS já era muito esquálido, insuficiente para as necessidades de saúde, e perdeu-se a chance de aumentá-lo”, afirmou Ligia, em referência a resultados obtidos, por exemplo, no Chile, na Colômbia, no Reino Unido, em Portugal e na Alemanha.
Legado
Segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil foi um dos países onde a covid não deixa como legado um incremento dos serviços públicos de saúde, especialmente na rede básica, em que planejamento e prevenção fazem a diferença. “E isso com um aporte de recursos substancial, que nunca tinha acontecido antes. O que é triste é que houve dinheiro, mas ele não foi canalizado para expandir a rede estruturante necessária para atender melhor a população”, disse Ligia.
Para a professora da UFRJ, o quadro comprova a falta de coordenação do Ministério da Saúde na crise sanitária. “O que o governo federal fez foi repassar recursos para Estados e municípios, que, por sua vez, repassaram para terceiros. O dinheiro foi escoado. Não estou dizendo que foi pelo ralo, porque temos algum resultado positivo, mas certamente não era o esperado.”
Planejamento
Presidente do Instituto Todos pela Saúde, Jorge Kalil destacou que, para cumprir seu papel, o SUS precisa não só atender, mas planejar os atendimentos. “Assim como o zika, a pandemia nos deixará casos crônicos. Sabemos que há muitas questões neuropsiquiátricas que vão trazer sequelas a longo prazo. Outras dizem respeito a complicações respiratórias e ainda cardiológicas, como aumento de enfartes”, disse o imunologista, em referência à covid longa.
Essas novas demandas se juntam a outras que ficaram suspensas durante a pandemia em muitas cidades cujas redes de saúde não foram suficientes para atender a urgência da covid-19 e, ao mesmo tempo, as necessidade de procedimentos eletivos, como cirurgias não emergenciais ou consultas com médicos especialistas.
Em São Paulo, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou que “em nenhum momento, mesmo durante a pandemia”, as cirurgias eletivas foram suspensas. Em 2020, foram realizadas 10.810 e, em 2021, 19.170 cirurgias, além de procedimentos cirúrgicos de pequeno porte. O total de procedimentos, no entanto, não conseguiu fazer a fila cair substancialmente. Em janeiro de 2019 havia 153 mil pacientes à espera. Hoje, são pelo menos 112 mil.
“Desde o início da pandemia, o sistema de saúde passou por diversas ampliações para o atendimento à população, o que fortaleceu a rede de forma permanente. De lá para cá, dez novos hospitais municipais foram entregues – com 1.649 leitos –, mais de 31,1 milhões de vacinas, aplicadas e a implementação da telemedicina na rede pública de saúde”, ressaltou a pasta, em nota.
Leitos
A análise dos dados estruturais do SUS entre 2019 e 2021 mostra que o principal resultado proporcionado por causa da pandemia se deu na rede de leitos de UTI. Ao fim do ano passado, o total de leitos públicos de terapia intensiva era cerca de duas vezes maior do que o registrado em 2019.
“Tal aumento repercutiu sobre a composição público-privada que, em 2019, estava configurada pela participação pública de 37% do total e, em 2021, passou para 44%. Em Estados como São Paulo e Rio, nos quais predominavam os leitos privados, a parcela pública cresceu de 30% para 37% e de 40% para 46%, respectivamente, no intervalo de dois anos. Aumentamos, é fato, mas não demos a virada necessária”, afirmou Ligia.
O desafio, agora, é manter os leitos abertos, com equipamentos e equipes suficientes para administrá-los. “Sem dúvida que quando fazemos as coisas de afogadilho, sem nenhum tipo de planejamento, e simplesmente gerenciamos a crise, não temos a qualidade de gestão esperada. Agora, não tenha dúvida de que esse aumento nos deixou com outra capacidade de atendimento em UTIs”, disse Kalil.
A ampliação de leitos de tratamento intensivo não foi acompanhada, no entanto, de uma alta no número de profissionais capazes de operá-los. O levantamento da UFRJ aponta que caiu a proporção de médicos intensivistas no SUS durante a pandemia. Em 2019, 54,61% atuavam em hospitais públicos. Hoje, essa fatia diminuiu para 51,8%. A disputa entre o público e o privado atingiu ainda especialidades como infectologistas (61,72% atuavam no SUS antes de pandemia; agora, são 57,65%) e pneumologistas (taxa caiu de 40,94% para 36,79%).
Para o pesquisador na área de políticas e sistemas de saúde Mário Scheffer, os dados ilustram a desigualdade de acesso aos serviços. “Os brasileiros não têm chances iguais de adoecer e receber tratamento. O SUS dá certo onde ele é mais abrangente e universal. Para atingirmos isso, o caminho tem de ser o da universalidade. É preciso desfragmentar o sistema, reduzindo os gastos com saúde privada”, afirmou Scheffer, que é professor da Faculdade de Medicina da USP.
No Brasil, diferentemente de países onde os governos financiam a maioria dos gastos em saúde, a pirâmide é inversa: o setor público assume cerca de 44%, enquanto a saúde suplementar e particular, os outros 56%. No Reino Unido, por exemplo, que tem uma espécie de SUS em menor escala, essa relação é de 75% (público) e 25% (privado).
O Ministério da Saúde não respondeu aos contatos para comentar os dados.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.