Uma medida preparatória do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) para dar poder de investigação à Polícia Militar ampliou a insatisfação na Polícia Civil com a administração estadual e aprofundou a rivalidade já existente entre as duas corporações. As queixas dos policiais civis vão desde o reajuste salarial inferior que tiveram no ano passado até o escanteamento que sofreram na semana passada ao serem excluídos da Operação Fim da Linha, contra o Primeiro Comando da Capital (PCC), ação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) que contou com a participação dos policiais militares.
O quadro se agrava porque o atual secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite (PL), fez carreira na PM, enquanto a praxe é que a pasta seja comandada por nomes de fora das polícias de modo a evitar acusações de favorecimento de uma instituição em detrimento da outra. Nos bastidores, Derrite é apontado como o candidato de Tarcísio para o Senado em 2026 e sua base eleitoral é formada principalmente por policiais militares.
O subcomandante da PM, coronel José Augusto Coutinho, assinou uma ordem preparatória para que os policiais militares sejam capacitados para lavrarem termos circunstanciados (TCOs) em ocorrências de menor potencial ofensivo — como furto, lesão corporal e assédio sexual, entre outros — e atenderem a diligências, ou seja, ações investigatórias, pedidas pelo Ministério Público ou pelo Poder Judiciário.
Essas atribuições hoje são da Polícia Civil. O documento foi revelado pelo portal Metrópoles na quinta-feira, 18, e obtido pelo Estadão. “A Polícia Militar esclarece que estão em curso estudos para analisar as medidas administrativas necessárias para eventuais adequações institucionais à elaboração do termo circunstanciado”, disse a corporação.
O argumento do governo é que a medida dará mais celeridade ao atendimento das ocorrências, permitindo que os policiais militares voltem mais rapidamente às ruas para realizar o patrulhamento. Atualmente, os agentes têm que se dirigir até uma delegacia onde o termo circunstanciado é lavrado por um delegado.
“É uma forma de ganhar tempo e aumentar a presença policial na rua”, disse Tarcísio em uma entrevista coletiva na manhã de quinta-feira, 18. “Nessas ocorrências de menor potencial, ele lavra o termo circunstanciado, a própria Policia [Militar] faz, dá celeridade e isso não desmobiliza a guarnição que vai ter que passar às vezes horas numa delegacia esperando a lavratura de um boletim de ocorrência”, continuou o governador.
A declaração gerou reação do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), que disse, em nota, que a “demora” nas delegacias apontada por Tarcísio poderia ser resolvida se não houvesse déficit de 17 mil policiais civis no Estado.
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Ainda de acordo com a entidade, a elaboração do termo circunstanciado não é “simples preenchimento de ficha” e, sim, uma análise da ocorrência, inclusive para decidir se o caso é de prisão em flagrante, ofício para o qual a Polícia Civil é “treinada e formada” — os delegados precisam ter formação em Direito.
Jacqueline Valadares, presidente do Sindpesp, afirma que é preciso que o governo de São Paulo aposte num trabalho conjunto entre as duas polícias, mas que cada uma delas atue dentro da sua atribuição.
“Escantear a Polícia Civil não é o caminho”, disse ela, criticando também o reajuste maior para os militares em detrimento dos civis. “Cabe à Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo apostar na união entre as duas instituições e não fomentar disputas e crises institucionais, que acabam afetando negativamente o serviço oferecido na ponta, para o cidadão, que tanto clama, e não de hoje, por melhor acolhimento e resultados na Segurança Pública”, finalizou Jacqueline.
Legalidade da medida é alvo de divergências
A possibilidade de a PM elaborar o termo circunstanciado foi testada a partir de 2003 no governo de Geraldo Alckmin, então no PSDB, a partir de uma resolução editada pelo então secretário de Segurança, Saulo Abreu Filho. A medida, em caráter experimental, era válida apenas em algumas áreas da Grande São Paulo e na cidade de São José do Rio Preto. A resolução foi revogada em 2009, já no governo José Serra (PSDB), pelo secretário da Segurança, Antonio Ferreira Pinto.
Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que a medida vai sobrecarregar ainda mais a Polícia Militar e trará problemas em casos de violência contra a mulher, já que a vítima poderá ser atendida por um policial do sexo masculino em vez de ser encaminhada à Delegacia da Mulher.
“Os policiais civis estão vendo que a instituição deles está acabando e que eles estão sendo traídos pelo governador em quem eles votaram. No final, o governador está indo a favor da PM. O aumento diferenciado já foi um problema, assim como colocar o Derrite, um policial militar, como secretário. E agora a impressão que dá é que ele está dando tudo para a Polícia Militar e nada para a Polícia Civil”, disse.
Há também um debate sobre a legalidade da medida. A Polícia Militar diz na ordem preparatória e em nota enviada ao Estadão que foi autorizada por uma lei de 1995 a lavrar termos circunstanciados e que há jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) de que isso não configura atividade de polícia judiciária, o que segundo a Constituição cabe à PC. “A medida é autorizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e já é adotada em 17 estados brasileiros”, informou a corporação.
O advogado Fernando Capano, doutor em Direito do Estado pela USP, entende que a ordem preparatória vai na contramão do art. 144 da Constituição, que separa as atribuições das polícias, e também das leis orgânicas nacionais das duas corporações aprovadas no ano passado.
“Existe uma previsão nessas legislações de quais seriam as atribuições de cada polícia. Elaborar TCOs, especialmente TCOs que demandam produção de prova posterior, diligências, atender requisições diretamente do MP, não fazem parte desse rol de atribuições da PM”, declara o especialista. Para ele, a ordem preparatória para capacitar os militares a realizar essa atividade “vai fazer com que nós tenhamos um certo apequenamento da Polícia Civil capitaneada pelos delegados”.
Derrite exalta protagonismo da PM
Os policiais civis já estavam insatisfeitos desde a sexta-feira, 12, porque não participaram da Operação Fim da Linha, que mirou duas empresas de ônibus que prestam serviço para a Prefeitura de São Paulo e são acusadas de terem sido criadas com dinheiro do PCC. Enquanto a PC estava ausente, 340 policiais da tropa de choque da PM foram mobilizados.
“Não há qualquer interpretação que possa conferir à Polícia Militar, dentro de sua competência, a atribuição de realizar, especialmente, o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão expedidos no interesse da investigação criminal”, disse a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) em posicionamento divulgado no mesmo dia da operação.
“Não há o que tergiversar. O ocorrido aqui é perigoso, pois em verdade estamos assistindo instituições de Estado a se determinarem ao arrepio da Lei”, acrescentou a entidade. A situação piorou porque, dias depois da operação, Derrite disse em um evento da Polícia Militar que a instituição assumiria o “protagonismo” no combate ao crime organizado.
“A gente não só vai assumir, junto com o Ministério Público, o protagonismo no combate ao crime organizado, como a gente vai falar que existe um serviço de inteligência da Polícia Militar, existe um centro de inteligência que produz muita análise no combate ao crime organizado”, discursou ele. A fala foi publicada pelo próprio secretário em suas redes sociais.
Questionada sobre a declaração, a Secretaria de Segurança Pública respondeu que incentiva a integração das forças de segurança para enfrentar o crime organizado, promovendo parcerias e ações conjuntas entre as polícias Militar e Civil, outros órgãos e o Gaeco, do Ministério Público. “Essa colaboração não inviabiliza o trabalho da Polícia Civil, que mantém suas investigações em andamento em todo o estado de São Paulo”, disse a pasta.
Veja o posicionamento na íntegra da Secretaria de Segurança Pública
“A Polícia Militar esclarece que estão em curso estudos para analisar as medidas administrativas necessárias para eventuais adequações institucionais à elaboração do termo circunstanciado, conforme previsto na Lei 9.099/95 e referendado em recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (ADIs 5.637, 6.245 e 6.264). A medida tem como objetivo dar mais celeridade ao atendimento ao cidadão, otimizar recursos e garantir condições à Polícia Civil para o fortalecimento das investigações de crimes de maior potencial ofensivo, sem prejudicar o policiamento preventivo e ostensivo realizado nas ruas do Estado.
De acordo com a Suprema Corte, a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência (TCO) não é atribuição exclusiva da polícia judiciária. Trata-se de um procedimento administrativo para o registro de crimes de menor potencial ofensivo, que tenham pena máxima de até dois anos ou contravenções penais, conforme previsto no Art. 69 da Leiº 9.099/95. A medida é autorizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e já é adotada em 17 estados brasileiros.
Quanto à operação citada, a SSP incentiva a integração das forças de segurança para enfrentar o crime organizado, promovendo parcerias e ações conjuntas entre a Polícia Militar, Polícia Civil e outros órgãos, como o Gaeco. Essa colaboração não inviabiliza o trabalho da Polícia Civil, que mantém suas investigações em andamento em todo o estado de São Paulo.”
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