Uma cláusula antiprivatização existente nos principais contratos firmados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) com municípios paulistas dá poder a prefeitos para negociar com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), em ano eleitoral, retornos financeiros maiores em troca de aval para a venda da empresa. Aprovada pelas Câmaras Municipais de cidades como Guarulhos, São Bernardo do Campo, Santo André, Taboão da Serra e Santos, além da capital, a condição estabelece que, caso o controle acionário da Sabesp seja transferido à iniciativa privada, o acordo seja anulado e o tema retorne à pauta legislativa.
Além de ter potencial para atrasar o processo, a cláusula contra a privatização automática pode ainda tornar o negócio menos lucrativo para eventuais interessados. Isso porque os porcentuais relativos ao faturamento da Sabesp que cada município tem direito podem ser alterados durante o debate para a fixação das novas regras com a futura proprietária da companhia.
Parlamentares ouvidos pelo Estadão avaliam que os valores milionários de outorga (licença para operar o sistema de água e esgoto nas cidades) serão usados como moeda de troca por prefeitos para angariar o apoio do governador Tarcísio de Freitas nas eleições municipais de 2024. Os estudos de viabilidade econômica, já contratados pelo governo estadual, só devem ficar prontos no ano que vem. A privatização da Sabesp foi uma das principais bandeiras de Tarcísio na eleição do ano passado.
A negociação direta interessa especialmente a prefeitos que vão tentar a reeleição. É o caso, por exemplo, de Ricardo Nunes (MDB), da capital. Com dificuldades para executar seu plano de governo - até aqui, só cumpriu 13 das 77 metas anunciadas no início da gestão -, Nunes detém o contrato mais alto operado pela Sabesp, principal atrativo para eventuais interessados na compra da companhia.
Os serviços operados em São Paulo representam 45% da receita da companhia. São cerca de R$ 7 bilhões de faturamento por ano, dos quais 7,5% são repassados como outorga para a Prefeitura pela exploração de um serviço, que de acordo com a legislação, é de competência municipal.
Ao Estadão, o presidente da Câmara, Milton Leite (União), disse que a cidade pode negociar um retorno maior caso Tarcísio leve adiante o projeto de vender o controle da Sabesp. “É claro que tudo vai depender da viabilidade financeira do negócio, mas estou convencido de que a cidade pode negociar um valor maior. Não dá para o governo do Estado receber um outorga enorme e os municípios, não”, afirmou Leite. Segundo o vereador, o tema será tratado em um projeto de lei a ser encaminhado à Casa pelo Executivo.
Já Nunes prefere, por enquanto, não falar em aumento da outorga. “Tarcísio falou comigo que a Prefeitura não terá perda. Não discutimos essa questão ainda de elevar a participação da cidade, mas é algo, claro, que colocaremos. Assim que os estudos chegarem vamos sentar e ajustar os interesses da capital”, afirmou. Nunes se diz favorável à privatização caso o negócio antecipe investimentos, reduza a tarifa - promessa de Tarcísio - e assegure uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos.
O vereador Jair Tatto (PT) afirmou que a oposição a Nunes na Câmara vai se preparar para emperrar a negociação, levando o tema, se necessário, à Justiça. “Nós compreendemos que o Município será prejudicado e, como o prefeito tem uma maioria tranquila para aprovar na Casa, teremos de caminhar para a judicialização”, antecipou.
Riscos
Os decretos assinados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para alterar o Marco do Saneamento - e que seguem válidos - não impedem a privatização da companhia, mas concedem prazo maior para que municípios se unam em blocos com o objetivo de articular a concessão do serviço de acordo com seus interesses. Se a capital extinguir o contrato com a Sabesp, a cidade pode, em tese, procurar outra empresa para realizar a gestão dos recursos hídricos.
Para evitar o risco de perder o contrato com a Prefeitura de São Paulo, pessoas próximas ao governador afirmam que o Palácio dos Bandeirantes pretende priorizar a negociação com a capital para depois replicar o acordo com os demais municípios. Em função disso, Nunes tem sido procurado por prefeitos para unificar o discurso. A principal meta é conseguir manter - ou, de preferência, elevar - os repasses feitos atualmente pela Sabesp como outorga.
“O valor da empresa é dado pelo número de contratos que ela tem. Saneamento não é avaliar quanto vale a rede, mas o quanto ela vai faturar em função dos contratos. E quem assina o contrato de concessão é o município. Se há uma venda da empresa, os municípios têm que avalizar essa venda e têm que ser consultados”, defende o secretário-executivo do Consórcio Intermunicipal Grande ABC, Mário Reali, que é ex-deputado e ex-prefeito de Diadema pelo PT.
Atualmente, dos 375 municípios operados pela Sabesp no Estado, 58 deles preveem retorno financeiro por meio de repasses feitos pela companhia de até 4% do valor obtido com a tarifa - São Paulo é o único que recebe porcentagem maior. Nessa lista está Guarulhos, que tem o segundo maior contrato com a Sabesp e investimentos acordados em R$ 3,3 bilhões.
“Se a privatização não alterar os prazos contratuais, se os investimentos forem mantidos, se os índices de universalização continuarem subindo e a satisfação popular seguir boa, não vamos criar óbice. Mas, se for algo que pode deixar dúvida quanto a execução de todas as metas, vamos querer discutir e até mesmo executar essa cláusula”, afirmou o prefeito de Guarulhos, Gustavo Henric Costa, o Guti, que é do PSD, um dos partidos que compõem a base de Tarcísio.
Guti confirmou que tem conversado com Nunes para, ao menos, assegurarem as condições atuais. “É óbvio que Guarulhos não vai abrir mão destes 4%”, disse. Os contratos firmados pelos Municípios com a Sabesp têm prazos de até 30 anos.
Adesão
A necessidade de convencimento dos prefeitos é minimizada por Tarcísio. Em abril, o governador declarou que os municípios participarão dos resultados da empresa e que isso funcionaria como um incentivo à adesão das prefeituras. “Quando os municípios participam dos resultados, traz incentivo para aquele prefeito aderir à privatização”, disse, em evento do Brazil Investment Forum.
Segundo Tarcísio, o projeto de privatização só será enviado à Assembleia Legislativa de São Paulo se os estudos comprovarem que o negócio tem capacidade para reduzir a tarifa e para antecipar as metas de universalização dos serviços de água e esgoto para 2030. Mas as Câmaras Municipais também podem obstruir e atrasar o processo. Municípios como Itatinga e Botucatu já se mostraram contrários à transferência do controle acionário. Em Franca, uma moção de repúdio à privatização foi aprovada na Câmara Municipal.
A proposta também sofre resistência entre entidades de funcionários. O representante dos empregados no Conselho de Administração da Sabesp, Ronaldo Coppa, diz que o processo mais difícil será a compra da outorga dos municípios. “O governo vai precisar renegociar município por município. Como a concessão é municipal, considerada um patrimônio, não adianta só negociar com o prefeito, vai ter que passar pelas Câmaras Municipais”, disse.
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