‘Tenentismo levou ao generalismo dos anos 60’, afirma historiador José Murilo de Carvalho

Pesquisador aponta que jovens oficiais que queriam reformar a República passaram mais tarde ao campo conservador e apoiaram golpes em 45, 54 e 64

PUBLICIDADE

Atualização:

RIO – O tempo e os expurgos domaram o ímpeto reformista dos tenentes dos anos 1920 e os levaram ao campo conservador, aponta o historiador José Murilo de Carvalho, no aniversário de cem anos do dramático massacre dos 18 do Forte, marco inicial do tenentismo. Adesões à esquerda e à direita e expulsões causadas por mais de 80 revoltas afastaram muitos jovens oficiais da corrente reformadora, aponta. Quem daquela corrente ficou na vida militar ativa aderiu ao projeto do general Pedro Aurélio de Góes Monteiro – repressor dos oficiais reformistas em 1924 e chefe da Revolução de 1930 – de fazer do Exército um ator político.

O historiador e cientista político, José Murilo de Carvalho, durante entrevista cedida ao 'Estadão', no bairro do Flamengo, zona sul do Rio  Foto: Wilton Junior/Estadão - 23/10/19

PUBLICIDADE

“A maioria dos tenentes enquadrou-se e passou a fazer parte do establishment militar”, explica. Segundo ele, muitos desses oficiais “foram escalando a hierarquia militar” e passaram a atuar no campo conservador. “Vários deles estiveram presentes nos golpes de 1945, 1954, 1961, 1964.”

José Murilo lembra que o presidente Arthur da Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar e um ex-tenente dos anos 20, ligava explicitamente o golpe de 1964 a 1922. Expoente da “linha dura”, Costa e Silva foi contra devolver o poder aos civis após a derrubada do presidente João Goulart – em 1968, assinou o Ato Institucional Número 5. Como ele, outros ex-tenentes apoiaram o movimento civil-militar que destruiu a República populista e implodiu o regime democrático pós-1945 no Brasil.

“O tenentismo fez um logo percurso cujo ponto final foi o “generalismo” dos anos 60, incluindo o golpe de 1964 que teve o apoio de vários deles”, diz ele. A seguir, a entrevista de José Murilo ao Estadão.

Publicidade

Os oficiais que lideraram o tenentismo eram um grupo relativamente pequeno de jovens militares, que se voltaram contra o sistema político dominante há um século. O que explica que tenham tido tanta influência no Brasil, nos anos seguintes à Revolta de 22?

Como reconheceu Góes Monteiro, os “tenentes” da década de 1920 incluíam capitães para baixo. Foram derrotados em 1922 e em 1924. Centenas foram expulsos da corporação, mas pegaram carona na revolta de 1930, cujo chefe militar era o próprio Góes que os combatera em 1924. Muitos voltaram à corporação, onde de início eram chamados de melancias, verdes por fora, vermelhos por dentro. Permaneceram atuantes até o golpe de 1964 que apoiaram.

O que diferenciava aquele grupo de tenentes e capitães que participaram da Revolta de 1922 de seus antecedentes que derrubaram o Império, mais de 30 anos antes?

Os “tenentes” de 1889 formavam um grupo de sonhadores enfeitiçados pela doutrina positivista que lhes era ensinada pelo tenente-coronel Benjamin Constant. Passadas as turbulências da década de 1890, causadas pela Revolta da Armada, pela Revolta Federalista e pela guerra de Canudos, um delírio do fanatismo dos tenentes endossado por Floriano Peixoto. Campos Sales organizou as oligarquias estaduais e restabeleceu a hegemonia civil num pacto que durou três décadas.

Publicidade

Qual foi a relação, se é que existiu, entre o movimento militar que derrubou o Império, a República da Espada, com Deodoro e Floriano, o militarismo político de Hermes da Fonseca e o tenentismo dos anos 20 e 30?

A única relação era familiar: Hermes era sobrinho de Deodoro. Ele não era militarista, como Rui Barbosa tentou pintá-lo – fake-news... Em política, era pau mandado de Pinheiro Machado. Mas, no que se refere ao Exército, adotou política de modernização e profissionalização da corporação mandando oficiais estagiarem no Exército alemão.

Em quais aspectos desses eventos podemos identificar uma continuidade, se é que ela existiu?

O tenentismo fez um logo percurso cujo ponto final foi o “generalismo” dos anos 1960, incluindo o golpe de 1964 que teve o apoio de vários deles. Entre as lideranças golpistas estavam Juarez Távora, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, Juraci Magalhães, Nelson de Melo, os dois Etchegoyen, João Alberto, para citar alguns. Sobretudo, estava Costa e Silva, líder da linha dura, que se opôs a devolver o governo aos civis após a derrubada de Goulart. Ele chegou a ligar explicitamente 1964 a 1922. Os tenentes, então generais, opunham-se ao trabalhismo de Vargas e tinham aderido ao anticomunismo incentivado pela Guerra Fria.

Publicidade

PUBLICIDADE

Há quem identifique a ascensão dos tenentes com a emergência das classes médias urbanas no Brasil. O senhor concorda?

As revoltas tenentistas dos anos 1920 foram exclusivamente militares. O que se pode alegar é que o arranjo oligárquico estava fazendo água, sobretudo nas cidades. Arthur Bernardes, eleito em 1922, teve que tomar posse com apoio da Polícia Militar de Minas e governou boa parte do tempo sob estado de sítio. Em termos de imagem pública, havia admiração pela coragem dos jovens que lutaram até a morte na areia de Copacabana e dos que compuseram a Coluna Miguel Costa-Prestes que girou pelo País sem ser derrotada.

A Coluna Prestes em uma das fotos do Arquivo de Juarez Távora, que o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) , da Fundação Getulio Vargas (FGV) abiu ao público Foto: REPRODUCAO TASSO MARCELO

Relatos sobre a Revolta de 22 transcrevem declarações que mostram um certo messianismo dos oficiais que participaram do levante. Enquanto iam para o confronto suicida com as tropas do governo, em Copacabana, os militares diziam que se dirigiam para a morte, que precisavam resgatar a honra da farda etc. O que explica essa disposição?

Não diria messianismo. Boa parte da reação dos tenentes teve a ver com a ideia de honra – dizia-se pundonor – que faz parte do ethos militar de qualquer exército. No exército alemão, resolviam-se questões de honra pelo duelo. Morria tanto oficial que tiveram que proibir a prática. Em 1922, houve enorme agitação entre jovens oficiais contra uma carta atribuída falsamente a Artur Bernardes na qual o autor se referia ao marechal Hermes como um “sargentão sem compostura” e mandava comprá-lo com todos os seus galões. O reformismo pregado por Juarez Távora misturou-se ao revanchismo contra Artur Bernardes, representante da república oligárquica.

Publicidade

Esse messianismo continuou com os militares ao longo da República?

O ímpeto dos tenentes de reformar a República oligárquica continuou por um tempo em união com civis no Clube e 3 de Outubro. Mas o Clube logo perdeu força, muitos tenentes foram sendo promovidos, uns aderiram à Ação Integralista Brasileira, outros à Aliança Nacional Libertadora. Os que ficaram foram aderindo ao projeto de Góes Monteiro de fazer do Exército um ator político relevante, se não hegemônico, e foram escalando a hierarquia militar passando a atuar no campo conservador. Vários deles estiveram presentes nos golpes de 1945, 1954, 1961, 1964.

Em quais outros episódios esse messianismo ou sentido de missão se manifestou, na atuação dos tenentes? Esse sentimento ainda está presente nos militares brasileiros de hoje?

Entre 1930 e 1939, houve 88 manifestações de militares, incluindo generais, tenentes e praças. Os sargentos lideraram várias delas. Como consequência, houve grandes expurgos de alto a baixo da hierarquia, facilitando a tarefa reformista de Góis. A maioria dos tenentes enquadrou-se e passou a fazer parte do establishment militar. Uns poucos mantiveram a postura reformista, se não revolucionária, nas revoltas de 1935, de cunho comunista, da Aliança Nacional Libertadora, ANL, e de 1938, fascista, Ação Integralista Brasileira. Foram derrotados. Não vejo messianismo no comportamento dos tenentes. Há hoje no Exército um senso de tutela sobre a República que proclamou no golpe de 1889, sem participação popular e contra a posição da Armada.

Publicidade

Quais foram as consequências políticas da Revolta de 1922?

Foi indício e fator de agravamento da crise da Primeira República, dominada pelas oligarquias estaduais. A década apresentou vários outros sintomas de malaise, como a Semana de Arte Moderna, a fundação do Partido Comunista, ambos em 1922, o uso do Estado de Sitio. O arranjo oligárquico fazia água. O movimento de 1930 foi liderado por dois estados importantes que venceram usando suas polícias militares. A República era um fruto maduro, como o era o Império em 1889.

Há quem diga que o Império só foi encerrado pela eclosão do tenentismo, que atingiu em cheio a política da Primeira República, que guardaria elementos oligárquicos remanescentes do regime imperial. O senhor concorda?

Não concordo. O Império caiu por esgotamento do sistema do Poder Moderador que não servia mais às oligarquias agrárias. Se a República não fosse proclamada por golpe militar, ela o seria por uma Constituinte, como queriam os republicanos civis. O golpe adiou por alguns anos (até Campos Sales) a consolidação do novo regime. O Exército, avesso aos políticos, não tinha força para sustentar um governo só com base militar.

Publicidade

Podemos dizer que a República brasileira nasceu tardiamente, em 1922, em Copacabana?

A República brasileira ainda está por nascer, se vai nascer algum dia.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.