Em seu discurso na ONU, Jair Bolsonaro anunciou que o Brasil está disposto a receber religiosos católicos perseguidos na Nicarágua. Diferente do que alguns desavisados possam ter imaginado, o presidente não endereçou a questão visando trazer a perseguição religiosa como um tema que merece atenção da comunidade internacional. Se esse fosse o caso, precisaria falar sobre as minorias sistematicamente atacadas no Brasil, sobretudo no que tange às religiões de matriz africana, e sobre as quais seu governo faz muito pouco, assim como precisaria explicar sua disposição em dialogar com figuras consideradas grandes violadoras de direitos humanos mundo afora. Navegaria sobre um extenso mar de contradições, para dizer o mínimo.
No lugar disso, a fala de Bolsonaro é muito menos altruísta do que pode parecer. Está oportunamente inserida no bojo de uma campanha eleitoral que se orienta pela narrativa perversa de demonizar as esquerdas latino-americanas como um todo, insinuando que grupos cristãos poderão ser perseguidos também no Brasil, caso Lula seja eleito. Bolsonaro já havia tentado traçar paralelos entre a crise na Nicarágua e o fechamento de igrejas durante o lockdown por conta da pandemia de covid-19, no Brasil. Disse que “já tinha sido possível sentir um pouquinho da ditadura aqui” e que “os governos de esquerda são todos iguais”. Depois, durante a sabatina ao Jornal Nacional, tinha a palavra “Nicarágua” escrita em sua mão, reacendendo o debate e estimulando comparações. No meio tempo, Flavio Bolsonaro também publicou no Twitter que, por lá, “o amigo do Lula” estava “prendendo padres”. Borbulhou, daí, uma enxurrada de desinformação no mundo digital.
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A referência é à Daniel Ortega, presidente que está no poder desde 2007 e cuja mais recente eleição foi cercada de ampla contestação. É importante deixar claro: há, sim, indícios de que o espaço cívico e democrático esteja sendo diminuído na Nicarágua. Países e organizações internacionais questionam a legitimidade do pleito de 2021 e se avolumam denúncias de prisões e até mesmo acusações de tortura no país. Criticar a fala de Bolsonaro não significa, portanto, defender Ortega.
O que incomoda, nesse caso, é o seletivismo rasteiro do presidente brasileiro e a insistência em sugerir correlações espúrias que visam alimentar mentiras sobre seus concorrentes, além de manipular mentes e corações. Governos de esquerda não são todos iguais, e não é razoável supor que qualquer liderança afeita à esse espectro político adotará, automaticamente, posturas radicais, persecutórias ou ditatoriais. Aliás, na Nicarágua, Ortega persegue instituições religiosas não necessariamente por que professem uma determinada fé, mas porque se colocam como críticas ao seu governo. Também acossa, pelos mesmos motivos, líderes oposicionistas, jornalistas e ativistas. O que aconteceria se decidíssemos sugerir paralelos entre a Nicarágua de Ortega e o atual governo do Brasil?
*Fernanda Magnotta é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP.
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