Três Estados gastam R$ 190 milhões por ano para manter tribunais que só julgam PMs e bombeiros

Relatório do CNJ mostra que tribunais militares estaduais estão entre os menos produtivos do País; defensores justificam existência dos órgãos por agilidade e experiência interna

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Foto do author Pedro Augusto Figueiredo
Foto do author Samuel Lima

Com baixo volume de processos comparado a outras instâncias judiciais, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul gastam mais de R$ 190 milhões por ano para manter Tribunais de Justiça Militar (TJM) e julgar membros da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros em foro especial nos três Estados. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 91% desses recursos foram utilizados para pagar salários e benefícios para os 591 funcionários das Cortes militares estaduais. Os dados são referentes a 2022.

O tribunal paulista custou R$ 82 milhões, o mineiro, R$ 70 milhões e o gaúcho, R$ 38 milhões. Cada juiz e desembargador desses tribunais julgou, em média, apenas 110 casos no ano. A título de comparação, no Tribunal de Justiça comum menos produtivo do País, o do Acre, cada magistrado foi responsável pelo julgamento de 729 processos. Os três TJM foram procurados, mas não se manifestaram.

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No total, os três tribunais militares estaduais, os únicos existentes no País, julgaram 3.279 casos de janeiro a outubro de 2023. O número é ínfimo se comparado aos 4 milhões de processos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), 1,7 milhão de casos no TJ de Minas Gerais ou 1,4 milhão no do Rio Grande do Sul.

O relatório do CNJ não informa a despesa de 2023, mas os três tribunais militares foram autorizados a gastar R$ 239 milhões ao todo este ano, de acordo com as leis orçamentárias anuais (LOA) aprovadas em cada Estado. A cifra deve aumentar em 2024, considerando que o governo de Minas Gerais pretende reajustar o orçamento do TJM-MG em mais de 30% para acrescentar seis novos juízes recém-nomeados.

Além do custo aos cofres públicos, existe o receio de que a Justiça Militar como um todo, incluindo os tribunais estaduais, possa agir de modo corporativista em denúncias internas, sobretudo em relação aos oficiais de alta patente. Por outro lado, defensores da Justiça Militar afirmam que os militares são mais rígidos e que a vivência deles na prática enriquece os julgamentos e possibilita decisões melhores e mais rápidas.

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O prédio do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, um dos únicos existentes no País Foto: Divulgação/CNJ

“Há uma visão mais protecionista dos militares, baseada sempre nos princípios de hierarquia e disciplina, que a Justiça comum não trabalharia com esses valores, que só os militares entenderiam o real alcance desses princípios”, explica o defensor público da União, Nícolas Bortolon. Ele, no entanto, não concorda com o argumento e defende a extinção da Justiça Militar, o que inclui também o nível federal.

Flavio Bierrenbach, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar (STM), por sua vez, entende que os policiais militares podem ser equiparados aos membros das Forças Armadas. Dessa forma, faz sentido em sua opinião estabelecer uma Justiça própria nos Estados que leve em conta os valores do meio militar, assim como ocorre no âmbito da União.

“O maior bem do militar não é a vida, e sim a pátria. Em determinadas circunstâncias, é preciso que um integrante das Forças Armadas dê a sua vida e tire a vida alheia. Isso exige uma Justiça muito diferente, que tem de estar imbuída de outros valores”, argumenta. “É conveniente que haja uma justiça especializada para circunstâncias especiais.”

Como funcionam os tribunais militares estaduais

Os tribunais funcionam como a segunda instância da Justiça Militar estadual e são compostos por quatro juízes oriundos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, normalmente coronéis da ativa escolhidos pelos governadores, e por três juízes civis — um deles promovido da magistratura militar e dois membros indicados do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A função deles é julgar crimes militares e atos disciplinares praticados por policiais e bombeiros militares. Os mais comuns, de acordo com o CNJ, são crimes contra a administração militar e sindicâncias em processos administrativos disciplinares.

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As auditorias militares, que representam a primeira instância de julgamento em todos os Estados, contam com um juiz auditor, ao menos um juiz substituto e quatro vagas destinadas a oficiais, escolhidos periodicamente para compor os Conselhos de Justiça. A principal diferença está na segunda instância: quando não existe o tribunal estadual militar, como é o caso de todas as demais unidades da federação, os processos são analisados pelo TJ, ou seja, pela justiça comum daquele Estado.

Advogado e doutor pela PUC-SP, Dirceu Valle atua há mais de 20 anos na Justiça Militar e nega que exista corporativismo nas decisões, seja para condenar ou absolver os réus. Ele afirma que o papel dos TJMs é controlar a tropa e distribuir justiça para os militares. “Se essa Justiça tem pouco processo, é porque está cumprindo o papel dela”, diz.

Valle também aponta que a Justiça Militar é mais célere nos julgamentos. O Código de Processo Penal Militar estabelece prazo de 50 dias para a conclusão da instrução criminal, quando o acusado estiver preso, e de 90 dias nos casos em que responde em liberdade. Após essa fase, o processo fica pronto para o julgamento.

Desembargador baiano defende TJM no Estado

De acordo com a Constituição Federal de 1988, os Estados brasileiros que contam com efetivo superior a 20 mil militares podem criar Tribunais de Justiça Militar. Em 2004, uma emenda constitucional aprovada no Congresso passou a considerar tanto os policiais militares quanto os bombeiros para atendimento do critério.

São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul detinham, respectivamente, 90,4 mil, 42,1 mil e 19,6 mil membros em dezembro de 2021, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os gaúchos, portanto, estariam abaixo do mínimo hoje. Outras localidades aptas no final daquele ano eram Rio de Janeiro (55,9 mil), Paraná (20,4 mil) e Ceará (20,2 mil). No entanto, esses Estados não possuem tribunal específico para militares.

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Estados com mais de 20 mil militares podem optar por criar tribunal para julgar crimes militares e atos disciplinares Foto: Polícia Militar de São Paulo Foto: DIV

A Bahia, com 31,6 mil militares, também cumpre a exigência. O desembargador Baltazar Miranda Saraiva, do Tribunal de Justiça baiano (TJ-BA), apresentou um anteprojeto este ano propondo a criação do TJM no Estado.

A Constituição prevê que a decisão de encaminhar o projeto cabe exclusivamente ao Tribunal de Justiça estadual. Depois, a matéria precisa ser aprovada pela Assembleia Legislativa como lei ordinária, ou seja, precisa de maioria simples de votos dos deputados para ser aprovada.

Esse ponto, aliás, motivou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a ajuizar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando a criação e organização do tribunal militar gaúcho. Sob relatoria do ministro Edson Fachin, o plenário decidiu que a existência do TJM-RS exige a aprovação de uma nova lei.

A estrutura da justiça militar gaúcha deriva do chamado Conselho de Apelação da Brigada Militar, de 1918, e está prevista na Constituição Estadual de 1989. São Paulo e Minas Gerais organizaram seus tribunais militares em 1937 e 1946 e também os preservaram dessa maneira, sem o envio da proposta pelo TJ. Segundo o STF, porém, a decisão do plenário discutiu o caso específico dos gaúchos e, embora possa servir de precedente, não se aplica automaticamente aos mineiros e paulistas.

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