O governo Lula vai editar, nos próximos dias, uma portaria de Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional (Espin) ou até mesmo um decreto para atuar de forma mais rigorosa nos seis hospitais federais do Rio de Janeiro. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, apresentou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a proposta de um decreto que declara estado de calamidade pública nos hospitais hoje sob intervenção, em uma tentativa de resolver a crise na rede de atendimento no Rio, que há vários anos envolve loteamento de cargos entre partidos e denúncias de corrupção.
A minuta do decreto já está na Casa Civil. Até o momento, porém, a Secretaria de Assuntos Jurídicos prefere o modelo de portaria, um pouco menos abrangente. De qualquer forma, com a medida, o Ministério da Saúde poderá requisitar bens, serviços e servidores para os hospitais da Lagoa, do Andaraí, de Jacarepaguá (Cardoso Fontes), de Ipanema, dos Servidores do Estado e do Bonsucesso. Além disso, a pasta fica autorizada a promover compras emergenciais de medicamentos, a fazer contratações temporárias de pessoal, de serviços e equipamentos e a celebrar aditivos contratuais e convênios.
A intervenção nos hospitais do Rio, sem prazo para acabar, é uma ofensiva que mobiliza diversas áreas do governo num momento em que pesquisas indicam perda de popularidade de Lula a pouco mais de seis meses das eleições municipais.
O colapso dos hospitais do Rio foi assunto da reunião ministerial do último dia 18, quando Nísia chegou a se emocionar diante dos colegas e de Lula. Pressionada há tempos pelo Centrão e até por dirigentes do PT, como o deputado Washington Quaquá, vice-presidente do partido, a ministra fez ali um desabafo e disse que não seguiria conselhos para “falar grosso” com seus críticos.
“Uma mulher pode ser firme sem falar grosso”, afirmou Nísia, que não tem filiação partidária. Em seguida, saiu da Sala Suprema do Palácio do Planalto, onde ocorria a reunião, para se recompor. Foi abraçada pela primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, e pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves.
No dia seguinte, 19, Lula chamou Nísia e secretários da pasta para um encontro reservado. “Cuide da gestão e se preserve. Da política a gente cuida”, disse o presidente à ministra, de acordo com relatos de participantes da reunião. Nos últimos tempos, os hospitais federais do Rio foram dominados por indicações do grupo de Lira, do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e também de petistas.
O objetivo imediato da Emergência em Saúde Pública, no rastro da criação de um comitê gestor dos hospitais – anunciada na semana passada – é reforçar as equipes de saúde. A estratégia inclui remanejamentos e requisição de serviços públicos e privados enquanto perdurar a crise sanitária no Rio.
O governo também prepara novas mexidas em cargos nos hospitais após a demissão do diretor do Departamento de Gestão Hospitalar do ministério, Alexandre Telles, e do secretário de Atenção Especializada à Saúde, Helvécio Magalhães, substituído pelo médico sanitarista Adriano Massuda.
Nos bastidores, auxiliares de Lula preveem fortes reações do Centrão a trocas de seus afilhados políticos. Há relatos de que até mesmo milicianos interferem na administração desses hospitais.
Em fevereiro, Lira e outros deputados protocolaram um requerimento questionando Nísia sobre os critérios usados para a distribuição de emendas parlamentares à saúde. O Centrão avalia que o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, tem privilegiado prefeitos do PT na partilha do dinheiro.
Quando a ministra apresentou tabelas com números para desmenti-los, integrantes do bloco consideraram as explicações insuficientes. Na avaliação do Planalto, novas cobranças virão com o intuito de derrubar Nísia.
Um levantamento produzido pelo Ministério da Saúde mostrou que, no período de 2018 a 2023, houve redução de 1.639 servidores nos hospitais federais do Rio. O relatório apontou, ainda, déficit de 7.002 profissionais na rede. O Sindicato dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social no Estado estima que há 1,7 mil contratos de trabalho com vencimento previsto para maio.
A tenebrosa situação dos hospitais do Rio – alvo de vários escândalos, como a máfia das próteses – apareceu no relatório da CPI da Covid, instalada em 2021, no governo de Jair Bolsonaro. O Tribunal de Contas da União (TCU), por sua vez, já abriu várias investigações para apurar indícios de desvio de dinheiro público. Mas entra e sai governo e o descalabro continua.
Em março de 2005, Lula chegou a editar um decreto que declarou “estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde” no Rio. À época, o ministro da Saúde era Humberto Costa (PT), hoje senador. Pouco mais de um mês, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou aquela intervenção, a pedido do então prefeito César Maia, e proibiu o Ministério da Saúde de utilizar servidores, bens e serviços municipais em quatro hospitais federais da cidade.
Milícias ganham força e atuam como poder paralelo
De lá para cá, o cenário só se agravou e as milícias vieram à tona com mais força, atuando como uma espécie de poder paralelo também na área da saúde. Ministros de Lula dizem contar com o aval do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), para as mudanças, mas há também muito ceticismo e fogo amigo nessa crise.
Candidato à reeleição com apoio do PT, Paes está hoje numa encruzilhada política. Ele chegou a abrigar em sua equipe o deputado Chiquinho Brazão, que era secretário municipal de Ação Comunitária. Acusado de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, Brazão deixou o cargo em 1.º de fevereiro, antes mesmo da conclusão do inquérito da Polícia Federal.
O petista Washington Quaquá, que disse não ver em Nísia “tamanho para ocupar o cargo” de ministra da Saúde, saiu em defesa de Domingos Brazão. “Não vi ainda provas cabais”, respondeu ele à Coluna do Estadão, quando perguntado sobre as investigações da Polícia Federal, causando constrangimento na cúpula do PT.
Dirigente da corrente Articulação de Esquerda, o historiador Valter Pomar chegou a propor em reunião do Diretório Nacional do PT, nesta terça-feira, 26, a saída de Quaquá da vice-presidência do partido, para evitar mais constrangimentos ao partido.
No ano passado, Quaquá também causou polêmica ao posar para uma foto com o deputado bolsonarista Eduardo Pazuello (PL-RJ), general e ex-ministro da Saúde que, de acordo com as diligências da PF, defendeu a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Ao menos por enquanto, porém, a proposta de Pomar para defenestrar Quaquá não foi adiante. Ainda assim, o placar do PT indicou a divisão: houve 33 votos contra o debate do tema espinhoso e 19 a favor.
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