O tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro, não entregou pouca coisa à Polícia Federal ao fazer acordo de colaboração premiada e apontar o dedo para quem disseminava notícias falsas, dentro do governo, com o intuito de dizimar adversários políticos.
O termo “gabinete de ódio”, revelado pelo Estadão, surgiu durante uma reunião realizada no Palácio do Planalto, em meados de 2019, da qual participaram ministros da área militar. Foram generais inconformados com a ofensiva deflagrada nas redes sociais por auxiliares de Bolsonaro que batizaram assim o grupo instalado numa sala do terceiro andar do Planalto, a poucos passos do gabinete presidencial.
À época, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo, havia sido demitido com apenas seis meses no cargo. Irritados, os militares responsabilizavam aquele “bunker” ideológico, sob o comando do vereador Carlos Bolsonaro, pela dispensa do colega.
“Uma gangue de internet, ou máfia digital, era o esquema de ataque sistematizado contra pessoas”, disse Santos Cruz ao Estadão, na noite de ontem. “Não dá para identificar o centro disso, mas, visivelmente, era tudo coordenado de algum ponto.”
Dois meses antes de sua demissão, em abril de 2019, Santos Cruz havia defendido, em entrevista ao Estadão, a regulamentação das redes sociais para evitar que postagens virassem “arma nas mãos de grupos radicais”. Foi então que o escritor Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, atacou duramente o general. “Controlar a internet, Santos Cruz? Controlar a sua boca, seu m.....”, disparou.
O general reagiu, sem qualquer defesa de Bolsonaro, definindo Carvalho como “uma personalidade histérica”. O guru de Bolsonaro morreu no ano passado.
Além de Santos Cruz, a ala militar do governo tinha nos principais cargos do Planalto, naqueles idos de 2019, os ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos. Comandante Militar do Sudeste, Ramos substituiu Santos Cruz na Secretaria de Governo. O general Otávio do Rêgo Barros era o porta-voz. No Ministério da Defesa estava o também general Fernando Azevedo e, em Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque.
Walter Braga Netto entrou na equipe em fevereiro de 2020 para chefiar a Casa Civil, dando mais poder ao núcleo militar do governo, que vinha perdendo a briga para o “bunker” ideológico. Quando Braga Netto foi deslocado para a Defesa – com o objetivo de conter a crise provocada por Bolsonaro após trocar Azevedo e os comandantes das Forças Armadas –, Ramos ocupou a Casa Civil. Pouco tempo depois, ele teve de dar a cadeira ao Centrão, sendo transferido para a Secretaria-Geral da Presidência.
Amigo de Bolsonaro, com quem estudou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, Ramos foi destratado pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, hoje deputado pelo PL, que o chamou de “Maria Fofoca”. Braga Netto, por sua vez, acabou sendo candidato a vice na chapa da reeleição e está inelegível até 2030, junto com Bolsonaro.
Como funcionava a milícia digital
Sob a batuta de Carlos Bolsonaro, o “gabinete do ódio” agia como milícia digital, de acordo com a CPI do 8 de Janeiro e o inquérito em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). O grupo disseminava mentiras e informações distorcidas por meio das redes sociais, que incluíam até mesmo montagens falsas de fotos e vídeos.
Com a senha das redes do pai, Carlos dava ordens para Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz, que trabalhavam no Planalto. Filipe Martins, então assessor para Assuntos Internacionais, também fazia parte do grupo, assim como Célio Faria Júnior, que Bolsonaro levara da Marinha e era chefe da Assessoria Especial da Presidência.
Mauro Cid detalhou à Polícia Federal como funcionava esse “bunker”, que não atingia apenas adversários de fora, mas também gente do próprio governo, como o então vice-presidente Hamilton Mourão. A caserna, o STF e os petistas, aliás, eram alvos frequentes do bombardeio.
“Existe um velho ditado que diz: ‘O que vem de baixo não me atinge´”, afirmou Mourão à Coluna. “Nunca me preocupei com essa turma e acho que isso (gabinete do ódio) não contribuiu para o sucesso ou insucesso do governo”, emendou o general, que hoje é senador pelo Republicanos, o mesmo partido de Carlos Bolsonaro.
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Para Mourão, as diligências do STF sobre milícias digitais, a cargo do ministro Alexandre de Moraes, não passam de “bobagem”. “Temos que investigar milícias que matam gente, isso sim”, disse ele.
Nem todos, no entanto, têm essa avaliação. Em 2019, o general Otávio do Rêgo Barros entrou em rota de colisão com o “gabinete do ódio” ao organizar cafés de Bolsonaro com jornalistas. Os encontros ficaram famosos por gafes e impropérios ditos pelo presidente, que chegou a chamar Flávio Dino, hoje ministro da Justiça, de “paraíba”.
Na mira de Carlos, o filho “02″, Rêgo Barros também caiu, em agosto de 2020, depois que o vereador o atacou nas redes sociais.
Testemunha desta história e também da venda de joias do acervo presidencial, Mauro Cid falou tudo isso e mais um pouco no acordo de colaboração premiada. A bola, agora, está com a Polícia Federal, o Ministério Público e o Supremo. Mas será que o “gabinete do ódio” acabou mesmo?
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