Em seu período à frente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o coronel Ricardo de Mello Araújo (PL), que será o vice do prefeito Ricardo Nunes (MDB) nas eleições de outubro, realizou uma manobra contábil para turbinar o resultado financeiro da companhia em 2022, segundo análise da atual direção da empresa, que acabou gerando um prejuízo em 2024, depois que a operação foi reavaliada. Já o militar alega que a gestão atual do entreposto concordou com o balanço apresentado e que busca achar um culpado por algo “fantasioso”. Especialistas dizem que as duas gestões podem ser responsabilizadas (veja abaixo).
A operação conduzida pela gestão Mello Araújo, que comandou a estatal de 2020 a janeiro de 2023, aumentou de forma artificial o lucro líquido da estatal federal em 228% no exercício de 2022. Isso ocorreu porque recursos que deveriam ser repassados aos permissionários (comerciantes) da Ceagesp foram incluídos no balanço como receita da companhia. O problema foi detectado pelo atual comando da estatal e o dinheiro será devolvido aos permissionários. Mas, por conta do aumento artificial do lucro, a empresa acabou pagando mais impostos e distribuindo mais dividendos a acionistas e participação nos lucros à direção do que deveria – inclusive ao próprio Mello Araújo – o que gerou um prejuízo financeiro de pelo menos R$ 17,6 milhões, segundo a atual gestão da Ceagesp.
Questionado pelo Estadão sobre a acusação de pedalada fiscal, Mello Araújo afirmou, por meio de nota, que sua gestão à frente da Ceagesp foi pautada por austeridade, eficiência, combate à corrupção e lisura. “Curioso é a atual gestão da Ceagesp vilipendiar este assunto, neste momento, ao passo em que quer fazer de conta que não concordou com os balanços apresentados no início de 2023″, diz o texto, acrescentando que, se havia suspeita de algo de errado no balanço, a nova gestão deveria ter solicitado prorrogação para análise. “O contrário disso, no serviço público, se chama prevaricação”.
Nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a direção atual da Ceagesp contratou uma auditoria independente que indicou a existência de inconsistências contábeis em registros de receita realizados em novembro de 2022, durante a gestão do coronel. Diante da suspeita de irregularidades, a Ceagesp aprovou, no início deste ano, a reabertura do balanço de 2022 para correções.
O documento ao qual o Estadão teve acesso foi publicado em 13 de junho e revisou o lucro de 2022 de R$ 33,9 milhões para R$ 14,8 milhões – uma redução de R$ 19,1 milhões.
A gestão atual calcula que o fato de o lucro ter sido inflado em 228% artificialmente gerou um prejuízo de pelo menos R$ 17,6 milhões para a empresa em impostos pagos a mais, participação nos lucros e dividendos distribuídos. Segundo a atual direção, a gestão Mello Araújo registrou indevidamente – e de forma proposital – R$ 51,7 milhões como receita da empresa, em novembro de 2022. Porém, mais da metade dessa quantia não pertencia ao entreposto, mas, sim, aos permissionários.
A cifra surgiu de uma imunidade tributária de IPTU concedida pela Prefeitura de São Paulo à companhia. Segundo a Constituição, imóveis pertencentes ao patrimônio da União, Estados e Municípios são isentos de IPTU. A Ceagesp apresentou três ações administrativas solicitando o reconhecimento desta isenção, entre maio e outubro de 2022.
Em novembro daquele ano, a Prefeitura cancelou todos os débitos de IPTU da Ceagesp, gerando um saldo de R$ 57,1 milhões devido à liquidação de uma dívida com a administração municipal. A estatal também ganhou o direito de receber os valores de IPTU pagos nos últimos cinco anos. No entanto, parte dos valores devolvidos e o saldo gerado pelo perdão da dívida precisariam ser repassados aos permissionários, atualizados pelo IPCA, pois o imposto foi rateado com eles. A Ceagesp funciona como um condomínio, onde cada comerciante paga um boleto que inclui aluguel, IPTU e outras taxas.
Um exemplo de prejuízo gerado pela manobra foi o pagamento excessivo de R$ 7,5 milhões em tributos, já que o lucro artificial elevou a base de cálculo. Também foram pagos R$ 8,6 milhões em dividendos de forma indevida aos acionistas (a União tem 99,68% da companhia e o restante está distribuído entre Conab e governo de São Paulo), além de R$ 1,1 milhão em Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e R$ 400 mil com a contratação de especialistas em questões tributárias.
Como diretor-presidente, Mello Araújo foi favorecido não apenas pela divulgação de um lucro maior do que o verdadeiro, como pelos valores de PLR pagos – assim como os diretores indicados por ele. Segundo o balanço, a PLR de cada um corresponde a uma folha de pagamento mensal. A remuneração de um diretor da Ceagesp é de R$ 32.057,24.
A companhia informou que, em resposta à manobra contábil da gestão Mello Araújo, “reabriu o balanço financeiro de 2022 e aguarda a Assembleia Geral Ordinária (AGO), com data ainda não definida, para tomar as devidas providências e encaminhamentos”. Executivos da companhia afirmaram à reportagem que vão buscar junto à Receita Federal a recuperação dos impostos pagos em excesso. Avaliam também propor na próxima AGO a devolução dos dividendos distribuídos a mais. Porém, não há previsão de restituição dos valores de PLR pagos a mais aos funcionários.
A gestão atual argumenta que Mello Araújo estava ciente da obrigação de devolver parte do dinheiro aos comerciantes, pois, em dezembro de 2022, sua administração devolveu duas parcelas de IPTU aos permissionários, referentes aos meses de agosto e setembro de 2022, levando em conta a imunidade tributária. “Mas, inexplicavelmente, não efetuou os registros corretos acerca de todos os (outros) valores a serem restituídos, gerando assim um lucro incorreto no balanço de 2022 e todos os prejuízos anteriormente apontados”, afirmou.
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Presidente do Sindicato dos comerciantes defende Mello Araújo
Presidente do Sindicato dos Permissionários em Centrais de Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Sincaesp), Aderlete Maçaira defende que o prejuízo gerado pela inconsistência contábil no balanço de 2022 não é da gestão Mello Araújo, mas, sim, da atual diretoria. “Em 2023, o balanço de 2022 não foi assinado por Mello Araújo, pois ele já havia deixado o cargo. Quem aprovou o balanço e todas as contas foi a atual gestão. Essa gestão é responsável por tudo o que foi aprovado”, defendeu Aderlete, alegando a possibilidade de interesses eleitorais por trás dessa decisão.
Já a atual diretoria alega que tomou posse em 3 de março de 2023, e que na primeira reunião, em 8 de março de 2023, foi necessária a aprovação das informações do balanço de 2022, que já tinham sido acompanhadas por órgãos estatutários e auditores na gestão Mello Araújo. “Não seria razoável que os diretores recém-empossados na administração da companhia em março de 2023, com apenas 3 dias de trabalho, questionassem ou analisassem com profundidade o relatório da administração e das demonstrações financeiras” afirmou em nota, completando que “a aprovação pela atual administração da companhia em sua primeira reunião de trabalho foi ato meramente formal e burocrático”.
Especialistas consultados pelo Estadão afirmam que, teoricamente, a responsabilidade pelo balanço de 2022 recai tanto sobre a gestão Mello Araújo, responsável pela geração das informações contábeis, quanto sobre a gestão Jamil Yatim, incumbida de revisar as informações apresentadas e que assina o documento.
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“Embora a atual gestão tenha elaborado as contas de 2022, a responsabilidade também recai sobre a diretoria anterior, que estava à frente na época dos atos que resultaram nessas contas. Portanto, ambas as gestões provavelmente seriam chamadas à responsabilização, e caberia ao magistrado imputar e alocar essa responsabilidade de forma adequada”, explica Gustavo Coelho, professor de Direito Empresarial do Ibmec e sócio do Bastilho Coelho Advogados.
Coelho esclarece, porém, que, caso fique comprovado que a inconsistência contábil foi feita de forma proposital, a responsabilidade para Mello Araújo será reforçada. “Se for constatado que houve fraude intencional, a responsabilidade é clara, conforme estabelecido no Direito Civil”, disse.
Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial da USP e sócio do PGLaw, explica que, caso o balanço de 2022 tenha sido aprovado pela AGO, os administradores não são responsáveis por erros nas contas da companhia. Ele afirma que, para responsabilizá-los, seria necessário primeiro anular a ata da AGO. “Com relação à culpa, ela precisa ser analisada com relação aos atos individualizados. Ou seja, é preciso analisar quais foram os diversos atos de negligência que eventualmente tenham ocorrido e quem tinha a responsabilidade por evitar os erros”, conta.
O advogado especializado em Direito Societário Vinicius Melo Santos, do escritório Lopes Muniz Advogados, acrescenta que também poderá ser responsabilizada a empresa de auditoria, assim como o contador responsável pelo registro indevido no balanço de 2022.
Gestão na Ceagesp é utilizada como trunfo na campanha de Nunes
Confirmado como vice do prefeito Ricardo Nunes (MDB) na disputa pela reeleição, Mello Araújo tem justamente na gestão da Ceagesp um trunfo apontado por aliados na campanha. O combate à corrupção e os lucros gerados durante o período em que esteve no órgão já foram lembrados por mais de uma vez pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que o indicou ao posto e, agora, o escolheu como vice de Nunes.
Em 2021, a gestão entregou lucro de R$ 27,3 milhões, após cinco anos de prejuízo. O resultado tem sido usado para associar o militar à imagem de bom gestor, buscando afastá-lo de seu passado como comandante das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), a tropa de elite da Polícia Militar, conhecida por sua alta letalidade.
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