Quem é o 'hacker' estelionatário usado por bolsonarista para defender voto impresso

Relator da PEC do voto impresso, deputado Filipe Barros mandou equipe a presídio para gravar vídeo na tentativa de ampliar narrativa contra urnas eletrônicas; cibercriminoso está preso em MG

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Foto do author Vinícius Valfré

BRASÍLIA – No fim de 2019, o hacker Marcos Roberto Correia da Silva foi preso pela primeira vez, em Uberlândia (MG), por atacar sites governamentais e aplicar golpes de internet. Foi pego enquanto visitava um amigo, mas se preocupou menos com o constrangimento e mais com a repercussão do fato. A todo tempo, com entusiasmo, perguntava aos policiais quando teria o nome e a imagem estampados. A publicidade dos feitos reforça a reputação de cibercriminosos como VandaTheGod, como é conhecido, e a divulgação – que não ocorreu – seria uma espécie de prêmio às avessas. 

A propaganda que o jovem não obteve há um ano e meio agora lhe foi dada por um deputado bolsonarista interessado em usá-lo para colocar em xeque a credibilidade das urnas eletrônicas. Filipe Barros (PSL-PR) mandou uma equipe ao presídio Professor Jacy de Assis, em Minas, para que o hacker falasse para as redes sociais sobre as supostas habilidades capazes de derrotar a Justiça Eleitoral. 

O deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

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O vídeo enfeitado com trilha de suspense e com a indicação de ser “bombástico” foi visto 500 mil vezes. Reproduzido por canais e sites bolsonaristas como suposta prova de fragilidade das urnas, ele é repleto de informações falsas e enganosas. Fontes com acesso às investigações a que ele responde garantem que suas capacidades são muito menos sofisticadas do que o jovem quer fazer parecer. 

Marcos Roberto foi perguntado se com tempo e estrutura conseguiria “invadir o sistema eleitoral”. Algemado, afirmou: “conseguiria”. E disse que poderia inserir votos artificialmente em servidores: “manipularia tudinho”. Há anos a Justiça Eleitoral usa tecnologia de ponta e recebe especialistas para testes públicos de segurança. Nenhum atestou o que Marcos declarou. 

Com 25 anos, o jovem até pouco tempo usava um velho notebook Samsung e morava com uma companheira no assentamento Glória, na área de Uberlândia. Sem formação acadêmica, aprendeu sozinho a interagir com computadores e a programar. O vídeo foi ao ar em 16 de julho, dia em que Filipe Barros por pouco não amargou uma derrota. Perto de ver a proposta do voto impresso ser sepultada na comissão especial, ele e os governistas adiaram a análise até agosto. O presidente Jair Bolsonaro tem insistido que a urna eletrônica é passível de fraude. 

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No dia em que foi gravado pela equipe do deputado, o hacker contou ter sido chamado para conceder “entrevista a uma empresa de cibersegurança”. O jovem foi levado ao cartório da prisão, onde duas pessoas o aguardavam com câmera. Uma terceira fez perguntas por meio do celular de um dos presentes. 

Declaração que equipe de Filipe Barros pediu para preso assinar não faz menção ao deputado Foto: Reprodução

Os advogados do hacker tomaram ciência da gravação só após ela ir ao ar. Para eles, houve claro prejuízo à defesa e às garantias do preso, uma vez que o rapaz foi submetido a um contexto que pode implicá-lo em processos a que responde sem que tenha tido orientação técnica. “O deputado usou o Marcos como boneco de manobra política”, diz o advogado André Coura. 

Questionada sobre o vídeo, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais frisou que as questões deveriam ser feitas ao deputado. Acrescentou que o jovem “aceitou ser entrevistado” sem o advogado. A pasta é comandada pelo bolsonarista Rogério Greco, ex-procurador de Justiça de Minas Gerais. A pedido do deputado, o sistema prisional “ampliou a segurança” do hacker, que agora está em cela individual. A equipe fez o preso assinar declarações em que atesta que a entrevista foi espontânea. Os documentos não citam o deputado. Apenas que as filmagens seriam usadas “no âmbito do debate da PEC 135/2019”. 

Duas aparições

O nome de Marcos apareceu em dois crimes cibernéticos recentes: o ataque ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de novembro, e o vazamento de dados da Serasa de mais de 200 milhões de CPFs. Ele também esteve envolvido em invasões anteriores, como à página do Senado. O ataque ao TSE, explorado pelo deputado, não gerou prejuízo ao sistema de votação e à contagem de votos. Os dados vazados eram administrativos. 

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No depoimento à equipe de Barros, o hacker mudou a versão em que negava a invasão do TSE. Disse que entrou no tribunal e passou informações a outra pessoa. Até então, a responsabilidade por esse ataque era do hacker português Zambrius, que foi preso em Portugal e afirmou ter agido sozinho. 

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Procurado, o deputado declarou, por meio da assessoria, que eram assessores dele as pessoas que foram ao presídio. “Em nenhum momento restou ocultado o fato de estarem vinculados ao Congresso”. Barros afirmou não haver “espaço para especular as razões pelas quais Marcos dispensou” o contato com seus advogados. Ele está preso preventivamente desde 19 de março, quando a PF deflagrou a Operação Deepwater. Os advogados afirmam que ele é investigado por receptação qualificada das informações roubadas. 

Segundo o hacker, o “ativismo” é o que o motiva. Ele é conhecido por ser “defacer”, um tipo de hacker que acessa servidores de sites e altera as informações visíveis por quem os acessa – substituindo, por exemplo, o site por alguma mensagem sobre uma tela preta. Entre os alvos preferenciais estão sites de órgãos públicos. O “defacement” de páginas é visto por cibercriminosos como protestos contra o sistema. 

No vídeo de Barros, Marcos é apresentado como um hacker ativista. O bolsonarista desprezou uma parte do passado do jovem. Ao ser preso em 2019, Marcos era alvo de inquérito por estelionato. A denúncia da promotoria de Uberlândia cita mais de 200 tentativas de compras de produtos na internet a partir de cartões de crédito de terceiros obtidos por fraude. Ele saiu da prisão e passou a usar tornozeleira eletrônica. Nas redes, anunciava a venda de bancos de dados roubados em troca de bitcoins. Ao Estadão, pouco antes de ser preso pela segunda vez, confirmou que costumava confiscar informações e pedir resgate por elas. As vítimas preferenciais seriam de fora do Brasil.