Delegada há mais de 20 anos, Adriana Accorsi (PT), de 47 anos, nunca teve sua família ameaçada, mesmo trabalhando em investigações sobre pedofilia e tráfico infantil. Mas foi só concorrer à prefeitura de Goiânia, nas eleições do ano passado, que um perfil anônimo sugeriu a morte de suas filhas – uma de dois e outra de 26 anos: “Já comprou o caixão da Verônica e da Helena?”, diz a mensagem.
“Já fui muito hostilizada. Diziam que eu não daria conta, duvidaram da minha capacidade. Mas jamais os ataques chegaram ao nível do ano passado. Foi o pior”, disse a delegada. Levantamento feito pelo Estadão mostra que Adriana não é exceção entre mulheres que concorreram a prefeituras nas capitais do País. Ao menos 75% delas disseram à reportagem ter sofrido violência política de gênero.
A pesquisa foi enviada a todas as 58 mulheres que concorreram aos Executivos municipais das capitais no ano passado. Destas, 50 responderam. Entre elas, 44 relataram violência. A maior parte (46,7%) disse sofrer ataques com frequência e (72,3%) acredita que os episódios prejudicaram a campanha.
“Os ataques são voltados ao corpo da mulher ou relacionados a estereótipos de gêneros, tal como questionamento a papéis sociais tradicionais ou outros meios com objetivo de negar sua competência na esfera política”, disse Tássia Rabelo, doutora em ciência política e professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Uma das candidatas relatou ao Estadão, sob anonimato, ter recebido oferta de R$ 10 mil para retirar a sua candidatura, já que, segundo o autor, ela era “nova e mulher”. Enquanto uma ouviu durante um debate que “mesmo sendo mulher, era boa candidata”, outra escutou, de um jornalista, que não servia para ser prefeita, pois era “mulher, feia e sem alma”.
Menções a maridos e ex-namorados se repetem nas histórias contadas à reportagem. “Perguntaram se meu companheiro estava de acordo com minha candidatura”, disse uma delas. Outra afirmou ter sido alvo de campanha difamatória e de desinformação, com postagens insinuando um relacionamento com um ex-chefe. O uso de elementos de conotação sexual é recorrente. “Não voto para prefeita, te queria na minha cama”, ouviu a deputada Marina Helou (Rede) durante ato de campanha na Avenida Paulista.
No Brasil, o debate sobre violência política de gênero começou a caminhar recentemente. O próprio termo tornou-se mais conhecido no pleito deste ano, com casos de ameaça e agressão contra eleitas. “Começamos a nos aproximar de uma realidade que as mulheres sempre experimentaram na política e que agora estamos desnaturalizando “, diz Roberta Eugênio, pesquisadora associada do Instituto Alziras.
Internet
Na pesquisa feita pelo Estadão, a violência psicológica, aquela que causa danos no estado mental ou emocional, foi quase unânime (97,7%) entre as que sofreram ataques na campanha. O ambiente de mais violência foi a internet, citado por 78% das mulheres. A deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) foi a mais atacada, segundo um estudo da revista AzMina que analisou tuítes direcionados a candidatas de sete Estados e concluiu que as mulheres receberam mais de 40 xingamentos por dia na plataforma.
Os ataques a Joice se intensificaram após rompimento com o presidente Jair Bolsonaro. “Sofri por um ano e dois meses um estupro moral, que me levou a um hospital e a perder meu útero”, disse Joice. Nas redes sociais, ela foi alvo de ataques gordofóbicos, que incluem “apelidos” como “Peppa Pig” e “Miss Piggy”.
Os casos de violência se estendem a ameaças de morte – ela anda escoltada. Em um dos episódios, recebeu, em um hotel, uma cabeça de porco, uma peruca loira e uma carta com a mensagem “vai sofrer, depois morrer”. Em outra ocasião, recebeu um e-mail com a imagem de uma mulher segurando a cabeça da vereadora assassinada em 2018, Marielle Franco, e a seguinte mensagem: “Senhora é a próxima”. Na campanha à Prefeitura de São Paulo, os ataques pioraram, disse ela.
Além da internet, o próprio ambiente partidário é apontado como um espaço de violência por 18% das candidatas. Joice, por exemplo, conta ter sofrido ataques por parte de outros deputados do PSL e diz ter precisado “brigar” para garantir espaço de liderança na sigla.
Descrédito
Palavras como “inexperiente”, “imatura” e “incapaz” estão entre os adjetivos que as candidatas mais ouvem ao longo do processo eleitoral, segundo a pesquisa.
A deputada estadual Olívia Santana (PCdoB) concorreu à prefeitura de Salvador no ano passado e disse que enfrentou a descrença de sua candidatura por não ter um homem como cabo eleitoral.“As pessoas diziam: mas você vai até o fim com essa candidatura, mesmo o governador tendo outra candidata? Foi toda uma luta na pré-campanha para justificar à imprensa e às outras lideranças políticas que, sim, eu era candidata e ia apresentar meu projeto”, contou ao Estadão.
Olívia relata ter sofrido pressão ao longo da pré-campanha para desistir de sua candidatura e apoiar outra pessoa. “É preciso muita força para não desistir quando há tanto descrédito.”
Tássia Rabelo diz que a violência política de gênero se tornou um empecilho para as mulheres ocuparem mais espaço na política. “A política é um lugar hostil para as mulheres. E ninguém quer estar em um espaço assim, por mais que acredite e tenha capacidade. Por que fazer parte de um ambiente em que há poucas mulheres e as que têm sofrem com a violência? É um desestímulo.”
Bolívia criou lei após morte de vereadora
A Bolívia é o único país da América Latina a ter uma legislação específica para coibir a violência política de gênero. A lei foi criada dois meses depois do assassinato da vereadora Juana Quispe, em 2012. No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta no final de dezembro do ano passado, que prevê prisão de quem assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidatas ou detentoras de mandato eletivo.
A cofundadora e diretora do Instituto Update, Beatriz Della Costa, observa que o grande número de casos de violência contra candidatas nas eleições municipais de 2020 levou, ao menos, o tema a ser discutido. “O assunto virou pauta, começamos a dar um nome para o que acontece. Só assim é possível gerar dados e criar políticas públicas”, disse.
Roberta Eugênio aponta que a legislação brasileira deve observar a interseccionalidade entre a violência política de gênero e outros marcadores sociais. No caso das mulheres negras, ela cita que os ataques geralmente são relacionados a funções sociais de menor prestígio e a um imaginário de subserviência – questões que estão conectadas também ao gênero.
“Quando avançarmos com uma legislação, é necessário que ela considere raça, sexualidade e classe. Caso contrário, avançaremos no enfrentamento à violência política contra as mulheres, mas as abarcadas serão apenas as brancas.”
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