BRASÍLIA – Por mais de uma década, familiares de vítimas da ditadura militar (1964-1985) ficaram sem documentos ou registros atestando a morte por perseguição política. Não tinham nem mesmo o atestado de óbito para os casos de notório assassinato durante os anos do regime. Entre os que passaram décadas reivindicando a obtenção do documento, Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, que desapareceu em 1971 após ser levado para um interrogatório militar.
A luta de Eunice para encontrar respostas sobre o paradeiro do marido e a busca pelo reconhecimento jurídico da morte dele fazem parte da trama do filme “Ainda Estou Aqui”, obra cinematográfica de Walter Salles lançada neste ano e que já levou mais de 2,5 milhões de brasileiros para as bilheterias. Uma das principais cenas do filme mostra quando Eunice Paiva recebe, em um cartório do Brás, no centro da capital paulista, a certidão de óbito do marido. O processo foi amplamente noticiado pela imprensa e ocorreu 25 anos após Rubens Paiva sair de casa para jamais voltar.
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Para os jornalistas que estavam em volta do cartório, Eunice Paiva resumiu em uma frase o simbolismo da retirada do documento: “É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito”.
O alívio sentido por Eunice foi concedido a outras 135 famílias no dia 4 de dezembro de 1995. Naquele dia, o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sancionou a Lei dos Desaparecidos Políticos, que reconheceu como mortas as pessoas que desapareceram na ditadura e eram “acusadas de participação em atividades políticas”.
Em agosto daquele mesmo ano, a viúva de Rubens Paiva fora convidada pelo presidente para participar da solenidade de envio do projeto ao Congresso. O texto foi elaborado pelo jurista José Gregori. Na ocasião, ela abraçou Fernando Henrique e o então chefe da Casa Militar, Alberto Cardoso. No livro que deu origem ao filme, o escritor e filho de Eunice, Marcelo Rubens Paiva, diz que o registro do cumprimento com Alberto Cardoso foi visto como um gesto de conciliação. Mas, no dia da cerimônia, nenhum comandante militar (na época com cargo de ministro) compareceu ao local.
No atestado de óbito de Rubens Paiva e dos outros 135 desaparecidos políticos, as causas das mortes não foram especificadas. Apesar do reconhecimento formal de que foram vítimas do Estado, a informação não era registrada nos cartórios.
A mudança ocorreu no último dia 10, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que os documentos devem incluir que os falecimentos se deram por “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964″. Os cartórios precisam emitir novas vias com o texto em até 30 dias.
A Lei de Mortos e Desaparecidos só se tornou realidade após pressão ao governo Fernando Henrique feita por Eunice e por Marcelo. No livro, o filho de Rubens Paiva relembra o momento em que Eunice foi ao cartório para receber o documento e posou sorrindo ao segurar o papel timbrado. Segundo ele, Eunice jamais apareceria com uma feição triste para os fotógrafos, pois queria mostrar que a família “não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista”.
“Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever. Minha mãe esteve na capa de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória. Ela nunca faria uma cara triste”, escreveu Marcelo.
Além de conceder os atestados para os 136 desaparecidos políticos, a lei criou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMPD), que foi instalada em 1996, extinta pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em dezembro de 2022, e retomada em agosto deste ano.
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O colegiado, que teve representantes militares, jurídicos e familiares de vítimas, foi responsável por julgar a responsabilidade do Estado em sumiços e assassinatos, a fim de garantir indenizações pagas pelo erário. A primeira composição da comissão teve a participação de Eunice Paiva e do atual procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet.
Quem também participou da primeira turma foi o ex-ministro dos Direitos Humanos Nilmário Miranda. Ele, que atualmente é assessor especial do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), disse que o trabalho feito por Eunice na comissão foi “espetacular”, e destacou a obra cinematográfica que conta a história da família Paiva.
“O filme foi fantástico. Todos da minha sala foram assistir e tiveram a mesma sensação que tivemos, de profunda indignação. Compartilharam com a Eunice Paiva a dor do desaparecimento, que não dá o direito de fazer um velório e uma despedida ao corpo. Tinham mães que nunca desfizeram o quarto dos seus desaparecidos, pensando que eles voltariam um dia”, disse Nilmário.
Familiares de desaparecidos pressionaram Lula e FHC antes das eleições de 1994
Autoridades que participaram da elaboração da lei promulgada por Fernando Henrique Cardoso também destacaram a pressão feita por Eunice Paiva. Ao Estadão, eles apontaram outros fatores que permeavam o contexto político da criação da lei.
Nilmário relembrou que o reconhecimento dos mortos e desaparecidos era um tema frequente nos debates do Parlamento no início da década de 1990. Na Câmara, ele chegou a liderar um movimento para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigaria os crimes na ditadura, mas foi desestimulado pelo ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães.
“Olha, a CPI não vai dar certo, está muito perto da Constituição e tem muito poder na CPI. Se você convocar um general acusado de tortura, ele vai ser obrigado a ir. Você vai criar crise que você não sabe o tanto que pode chegar”, relembrou Nilmário sobre as frases de Ulysses.
Segundo o ex-ministro, a eleição presidencial de 1994 foi essencial para que o tema fosse colocado em discussão em Brasília: os familiares das vítimas procuraram FHC e o então sindicalista Lula, que eram os favoritos da disputa, e conseguiram um compromisso de ambos para reconhecer as mortes das vítimas do regime por responsabilidade do Estado. Como foi FHC quem ganhou o pleito, coube a ele colocar a promessa em prática.
Ministro da Justiça de FHC diz que lei surgiu após consultas com militares
Ministro da Justiça no dia em que a lei entrou em vigor, Nelson Jobim disse ao Estadão que o reconhecimento dos desaparecidos na ditadura era uma das pautas primordiais de Fernando Henrique. Ele detalhou que teve que fazer articulações com o Exército. Uma das exigências dos quartéis foi que a regulamentação deveria impedir que guerrilheiros, que trocaram tiros com os militares no momento em que morreram, fossem agraciados com as indenizações. Além disso, era preciso garantir que a nova regulamentação não seria uma retaliação contra as Forças Armadas.
“Tive uma reunião com um número grande de oficiais, não era o Alto Comando, mas era uma série de generais. Nessa reunião, eu examinei todo o projeto com eles. Fizemos uma distinção importante que era a do sujeito guerrilheiro que estivesse em disputa com os militares, um atirando no outro, e a do guerrilheiro que já estava preso”, afirmou Jobim.
Um momento delicado foi quando encontraram documentos sigilosos sobre o guerrilheiro Carlos Lamarca, morto pelo Exército em 1971. O dossiê comprovava que ele não havia oferecido resistência aos militares quando tombou. Jobim lembra que, assim que teve acesso aos papéis, se reuniu com o então ministro do Exército, Zenildo Lucena, para explicar quais seriam os próximos passos do governo. Em um julgamento polêmico, que teve um voto contrário de Paulo Gonet, a Comissão de Mortos e Desaparecidos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Lamarca.
“(O presidente Fernando Henrique Cardoso) me disse que eu tinha que me reunir com os militares primeiro e ir ter uma conversa com o Zenildo. (...) Eu disse: ‘Olha, encontraram o material do Lamarca e eu já li tudo, vim aqui para vocês tomarem conhecimento’. Eles ficaram examinando os papéis e, no final, o Zenildo disse assim: ‘É, eles mataram o Lamarca. O que pretende fazer?’ Eu disse: ‘Ué, fazer o que determina a lei’”, relembrou Jobim.
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