BRASÍLIA – Faz 35 anos que uma viagem de avião entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro quase terminou em uma tragédia nunca vivenciada no Brasil. Em 1988, um desempregado rendeu a tripulação de um Boeing 737-300 da extinta Viação Aérea São Paulo (Vasp) e ordenou que a aeronave fosse atirada no Palácio do Planalto, em Brasília, na intenção de matar o então presidente da República José Sarney.
Os comissários de bordo serviam refeições para os 98 passageiros do voo Vasp 375, que decolou do Aeroporto de Confins, na capital mineira, às 9 horas do dia 29 de setembro, uma quinta-feira. Um dos viajantes era o maranhense Raimundo Nonato Alves da Conceição, de então 28 anos. Desempregado e endividado, ele creditava a própria situação financeira a Sarney.
Armado com um revólver calibre 38 e mais de 90 munições na bagagem, embarcou sem ser incomodado, iniciou o sequestro e ordenou a mudança da rota do voo. O novo destino seria o Palácio do Planalto. Começava ali um dos crimes mais emblemáticos da história brasileira, que será representado no filme “O Sequestro do Voo 375″, que acaba de estrear nas salas de cinema.
Em 1988, o Brasil vivia uma grave crise econômica, com altas taxas de desemprego e de inflação. Os planos elaborados pelo governo federal para combater a crise fracassaram, provocando um desapontamento na população e derrubando a popularidade do então chefe do Executivo. Para Nonato, o culpado desse cenário, que se estendia desde o fim da ditadura militar (1964-1985) era Sarney, que governou o País entre 1985 e 1990.
Naquele tempo, a segurança nos aeroportos brasileiros era ineficiente, e Nonato conseguiu embarcar no avião da Vasp sem ser revistado e sem passar por um detector de metais. O sequestro começou quando o maranhense atirou em um comissário e foi em direção à porta da cabine dos pilotos. Alguns tiros atravessaram a porta e atingiram o painel de controle do Boeing e a perna de um tripulante que estava como carona.
O comandante daquela aeronave era Fernando Murilo de Lima e Silva que, temendo a queda do aeronave, pediu para que o co-piloto, Salvador Evangelista, abrisse a porta da cabine. Enquanto isso, Silva alertou o Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta) sobre o sequestro. Ao render a tripulação, Nonato disse que a aeronave rumaria para Brasília e seria atirada no Palácio do Planalto.
Evangelista foi atender a uma resposta do Cindacta sobre o alerta de sequestro e recebeu um tiro na cabeça, morrendo na hora. Mesmo vendo o colega morto ao seu lado, o piloto se manteve calmo e elaborou estratégias para impedir que aquele voo terminasse com a perda de mais vidas inocentes. Ele obedeceu o sequestrador e seguiu em direção à Brasília, mas sobrevoou a capital federal em uma altitude elevada, impedindo que o criminoso avistasse a sede do governo.
Dois caças da Força Aérea Brasileira (FAB) acompanhavam o voo da Vasp e esperavam ordens superiores para derrubar o avião caso se aproximasse de algum prédio governamental de Brasília. O piloto avisou Nonato sobre a possibilidade de o avião ser abatido antes de chegar ao Planalto, e o sequestrador então mandou que a aeronave fosse para São Paulo.
Piloto fez manobras arriscadas para salvar passageiros e tripulação
O 375 planejava fazer um percurso de 350 quilômetros entre BH e Rio, e não tinha mais combustível para ir até Brasília e depois para a capital paulista. Então, o piloto decidiu fazer manobras ousadas para imobilizar Nonato. Ao ver o aeroporto de Goiânia, o comandante operou uma técnica chamada tonneau, que é quando o avião faz um giro completo sobre o seu eixo longitudinal. Nonato continuava consciente. Então, Silva fez um mergulho de 9 mil metros com a aeronave, girando em parafuso. A acrobacia funcionou, e o sequestrador ficou desacordado.
Depois de quatro horas rendido por Nonato nos céus, o piloto conseguiu pousar o Boeing em Goiânia. Nonato retomou a consciência e continuou o sequestro, libertando feridos e mantendo 90 reféns por cinco horas. O maranhense exigia que outra aeronave fosse entregue para levá-lo até o Palácio do Planalto, mantendo a sua pretensão de atingir o prédio do Executivo federal. Às 18 horas, ele saiu do Boeing e foi até outra aeronave, cercado pelo piloto e por dois comissários para evitar ser vítima de disparos de atiradores de elite.
Ao entrar no novo avião, agentes da Polícia Federal (PF) trocaram tiros com Nonato, que foi baleado nas nádegas e nos rins. Ele sobreviveu aos disparos, mas morreu cinco dias depois em um hospital. A morte do sequestrador é misteriosa, com teorias da conspiração que alegam que ele foi envenenado. Um legista do Instituto Médico Legal (IML) concluiu que ele teria falecido por anemia falciforme, prévia ao crime. O piloto, Fernando Murilo de Lima e Silva, faleceu em 2020, aos 76 anos, em sua residência na Armação de Búzios, no Rio de Janeiro.
Entrada de passageiros nas cabines é quase impossível hoje
Apesar do voo 375 quase terminar em uma tragédia no Palácio do Planalto, a segurança dentro dos aviões não mudou após o sequestro. Foi apenas depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, quando terroristas da Al-Qaeda sequestraram quatro aviões nos Estados Unidos e atingiram as torres gêmeas do World Trade Center, que o acesso de passageiros às cabines se tornou mais difícil.
Após os ataques nos Estados Unidos, todos os aviões mundo afora passaram a ter portas blindadas e reforçadas, impedindo que passageiros possam acessar as cabines de comando. De acordo com o professor Alvaro Abdalla, da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), na época do voo 375, era comum que pilotos convidassem viajantes para conhecer as cabines durante o percurso, algo que se tornou impensável nos dias atuais.
“As cabines das aeronaves eram acessíveis, sendo possível até ser visitada por passageiros. Não havia treinamentos para a tripulação saber como lidar com passageiros que poderiam oferecer riscos. Hoje, esses tipos de treinamentos são feitos pelas companhias aéreas”, afirmou.
Mesmo sendo praticamente impossível o acesso de passageiros às cabines, Abdalla explica que os pilotos passam por treinamentos de comunicação e também de controle emocional para lidar com a situação de um possível sequestro. Essas preparações são feitas com base nas experiências do passado e buscam impedir que situações como a do Boeing da Vasp e dos ataques de 11 de setembro de 2001 se repitam.
Sequestro fez com que triagens de passageiros se tornassem mais rígidas
O especialista em aviação Adalberto Febeliano explica que o sequestro do Boeing inaugurou uma primeira onda de avanços na segurança nos aeroportos brasileiros. O segundo movimento ocorreu após o 11 de setembro, que tornou as triagens ainda mais rígidas.
Para ele, os aprendizados do voo 375 foram essenciais para tornar o controle de passageiros nos aeroportos brasileiros mais seguros. Em 1988, segundo o especialista, eram “frouxos”.
“Começaram a reforçar a segurança dos aeroportos em termos de controle do que o passageiro tinha nas bagagens de mão. Nos aeroportos de grande porte, passou a ser obrigatório o uso de detectores de metais e também veio o raio-x nas bagagens de mão”, disse o especialista.
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