BRASÍLIA – Diz o senso comum que as conchas do prédio do Congresso Nacional são invertidas para expressar atribuições constitucionais: a do plenário da Câmara é voltada para cima, como um recipiente, por ser onde o povo deposita suas demandas; a do Senado, para baixo, como uma tampa, expressa o “poder que vem de cima”, pois a Casa representa os Estados da federação. Essa versão deu sentido prático ao desenho de Oscar Niemeyer, mas não tem relação direta com os motivos artísticos do arquiteto.
Para o leitor mais apressado, eis a resposta curta: Niemeyer rascunhou opções sem conchas, com conchas viradas para o mesmo lado, à frente e por cima da estrutura, e até modelos com três cúpulas; descartou todas e escolheu a versão atual porque a preferiu. Simples assim, sem o intuito de expressar em curvas a função de cada plenário. E como referências, trabalhos dele mesmo: um de São Paulo e outro de Caracas, na Venezuela.
A resposta mais longa, escondida em estudos preliminares e anteprojetos para a cidade planejada entre 1956 e 1957 é um passeio pela História da construção de Brasília e da política nacional. É também uma prova contundente do poder criativo e provocativo de Oscar Niemeyer, que faleceu em dezembro de 2012 aos 104 anos.
Os desenhos à mão
Entre os estudos de Oscar Niemeyer para a configuração do Palácio do Congresso, algumas propostas bem distintas da atual ficaram pelo caminho. Em uma delas, sem cúpulas, os plenários ficavam nas extremidades da estrutura horizontal do prédio, mantendo as torres centrais destinadas a gabinetes.
Outra ideia que aparece nos rascunhos do arquiteto foi a de estabelecer conchas destacadas do prédio horizontal, e não sobre ele. Nesses rascunhos até a proposta de uma terceira estrutura em cúpula, menor, aparece no plano.
O arquiteto também rascunhou à mão livre opções dispostas na mesma direção.
As opções de Niemeyer para o Congresso Nacional demandariam mudanças na área destinada ao projeto e na maneira como o prédio se relacionaria em distância e proporções com a Esplanada dos Ministérios e com a Praça dos Três Poderes.
Não era uma questão trivial, afinal o projeto urbanístico do engenheiro Lúcio Costa para Brasília estabelecia que os prédios do Executivo, do Judiciário e do Legislativo estariam em posições específicas de um Eixo Monumental e dispostos como em pontas de um triângulo, à luz de exemplos da “mais remota antiguidade”.
A opção que avançou até os projetos oficiais foi pelas conchas invertidas, os “pratos” que marcam a paisagem de Brasília e costumam ser a principal representação visual da cidade.
Apesar de aparentemente equivalentes, as conchas do Congresso são diferentes em curvatura e tamanho. A do Senado tem 39 metros de diâmetro. A da Câmara, 62,8 metros. A estrutura foi construída para 63 senadores e 326 deputados – hoje são 81 e 513, respectivamente. Daí a divisão natural dos espaços para as respectivas Casas legislativas, conforme os tamanhos. E o povo tratou de associar os formatos com os plenários abrigados sob cada uma das cúpulas.
Os rascunhos de Oscar Niemeyer, muitos não datados, estão catalogados na pesquisa de Elcio Gomes da Silva, doutor em Arquitetura pela UnB, a partir de desenhos fotografados por Matheus Gorovitz. O pesquisador destaca a inversão e os tamanhos das conchas como traço marcante do trabalho do arquiteto.
“Além do antagônico na representação volumétrica das cúpulas, a proposta de uma cúpula invertida e maior, revela-se como o elemento de equilíbrio instigante do conjunto, aparente subversão das leis de construção natural”, salientou Gomes da Silva.
A versão do pai da obra para as linhas do Congresso tem mais poesia e arte do que política. “Meu propósito foi fixar os elementos plásticos de acordo com as diversas funções, dando-lhes a importância relativa exigida, e tratando-os no conjunto como formas puras e equilibradas. Assim, uma imensa esplanada, contrastando com os dois blocos destinados à administração e aos gabinetes dos congressistas, marca a linha horizontal da composição, destacando-se sobre ela os plenários que, com os demais elementos, criam esse jogo de forma que constitui a própria essência da arquitetura, e que Le Corbusier tão bem define: ‘L´architetcture est le jeu, savant, correct et magnifique des volumes assemblés sous la lumièr’.”
Por que conchas?
A predileção de Niemeyer pela linha parabólica estava expressa em trabalhos anteriores com os quais o arquiteto se consagrou. Era um formato adotado desde a antiguidade e perfeitamente útil às construções modernistas.
“Um dia, o arquiteto resolve utilizar uma forma antiga, antiquíssima, já incorporada ao vocabulário plástico da arquitetura. E isso foi o que aconteceu agora com o arquiteto norte-americano Pei, projetando a bela pirâmide do Louvre, em Paris. E o mesmo fiz ao adotar a cúpula – a abóbada circular que os egípcios usavam e os romanos multiplicavam – no edifício do Congresso Nacional. E nela intervim plasticamente, modificando-a, invertendo-a, procurando fazê-la mais leve, como é fácil explicar”, narrou.
A origem do projeto das cúpulas do Congresso é associada, por pesquisadores, a outros dois trabalhos anteriores de Oscar Niemeyer elaborados pouco antes de ele começar a trabalhar no projeto de Brasília.
O Palácio das Artes, em São Paulo, é de 1954. Conhecido como Oca, a estrutura localizada dentro do Parque Ibirapuera tem forte semelhança com a solução dada pelo arquiteto para o Senado – a concha voltada para baixo.
A outra referência que aparece nas pesquisas é o projeto não executado do Museu de Arte Moderna de Caracas, na Venezuela, também de 1954. A estrutura pensada era uma pirâmide invertida, cujo corte lateral se assemelha com a solução adotada para a concha da Câmara – voltada para cima.
“Não me bastava uma obra bem realizada e atendendo corretamente a sua finalidade; desejava, também, dentro das minhas possibilidades, que constituísse, pela pureza de sua forma, qualquer coisa de novo e característico, exprimindo ao mesmo tempo a técnica contemporânea e o movimento moderno na Venezuela”, disse Niemeyer na apresentação aos venezuelanos.
Uma cidade feita às pressas; o Congresso, mais ainda
A nova capital construída pelo presidente Juscelino Kubitschek, com seus eixos e divisões que a tornariam patrimônio da humanidade, foi feita às pressas; o prédio do Congresso, com mais pressa ainda. Os problemas para elaboração e construção do edifício, o preferido de Niemeyer em Brasília, sintetizaram as dificuldades do audacioso projeto da transferência da capital.
Não foi fácil trabalhar em Brasília. E o projeto do Congresso Nacional serve de exemplo. Um trabalho elaborado sem programa, sem uma ideia de como se ampliaria o número de parlamentares. ‘Tudo a correr’ era a palavra de ordem”
Oscar Niemeyer
Iniciada em novembro de 1957, a obra da sede do Legislativo federal se arrastou com intervenções até os idos de 1964. Na inauguração, em 21 de abril de 1960, os anexos ainda nem existiam e adaptações internas fora do projeto original para receber a estrutura de deputados e senadores transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central não puderam ser barradas.
Não que a construção a toque de caixa tenha influenciado o formato das conchas. Mas a corrida para atender a prazos, os problemas com as empreiteiras e as dúvidas sobre como a engenharia encontraria as tangentes para transportar o projeto do papel para o concreto deram um ar ainda mais tenso à execução.
“Recordo como foi iniciado aquele projeto. Israel Pinheiro [então presidente da Novacap] e eu indo ao Rio com o objetivo de dimensionar o antigo Congresso daquela cidade, para, multiplicando a área avaliada e os setores existentes, iniciar os desenhos”, lembrou o arquiteto, após as obras prontas.
Desde sempre se sabia do crescimento das bancadas, mas a falta de dados precisos sempre foi um problema, como destacava uma carta de Niemeyer a Costa, em 1975.
Brasília e seus edifícios governamentais foram projetados na base de programas pouco definidos. Servimo-nos, você e eu, de dados mais ou menos vagos e duvidosos (...) Em todos os prédios que constituem a Praça dos Três Poderes se apresentaram, com o correr do tempo, os mesmos problemas: falta de espaço útil e consequentemente a necessidade de construir prédios anexos”
Oscar Niemeyer, em carta a Lúcio Costa
Fontes: “Os Palácios Originais de Brasília”, de Elcio Gomes da Silva; “Brasília, uma questão de escala”, de Matheus Gorovitz; “Como nasce a arquitetura”, de Oscar Niemeyer; “Carta para Lucio Costa”, do acervo particular de Carlos Magalhães da Silveira; e Fundação Oscar Niemeyer.
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