Há 25 anos, em 16 de dezembro de 1998, a deputada federal Ceci Cunha foi executada a mando de um colega da Câmara dos Deputados. Talvane Albuquerque precisava da imunidade parlamentar a qualquer custo para driblar processos judiciais, mas havia amargado a suplência naquelas eleições. A mando de Albuquerque, dois pistoleiros invadiram a casa da sogra de Ceci, onde uma confraternização familiar havia acabado de começar, e executaram quatro pessoas. O crime ficou conhecido como chacina da Gruta, alusão a um bairro da capital alagoana.
Pouco antes do crime, Ceci e Juvenal, seu marido, estavam no Fórum de Maceió, onde ocorreu a diplomação (homologação do resultado que permite a posse) da deputada reeleita. Dirigiam-se à casa de Ítala, a sogra, no bairro da Gruta. No trajeto, um carro escuro os seguia.
Na casa da sogra, juntaram-se a Iran e Claudinete, cunhado e irmã de Ceci, respectivamente. Da varanda, iniciaram uma celebração brevemente interrompida: dois homens armados invadiram a festa. A primeira a ser alvejada foi Ítala, confundida com Ceci; Claudinete fugiu para outro cômodo da casa e, de lá, escutou um dos homens dizer: “A deputada é esta!”, ao que se seguiu uma rajada de metralhadora. Juvenal e Iran foram executados na sequência. Enquanto os assassinos fugiam, o autor intelectual já estava foragido.
Entre os diversos processos que Talvane Albuquerque respondia na Justiça, constava, inclusive, a suspeita de encomendar a morte de um radialista. Ele mal conhecia Ceci Cunha, que era a segunda opção na lista dos alvos pretendidos: a primeira escolha, Augusto Farias — irmão do lendário PC Farias, tesoureiro de Fernando Collor —, descobriu e melou o plano.
O crime chocou os deputados que haviam convivido com Ceci na legislatura que se encerrava. “Era uma pessoa querida, fiquei muito chocado. Ninguém acreditava que aquilo tinha acontecido”, afirma o ex-deputado federal Robson Tuma, relator da comissão de sindicância instalada para decidir o destino de Talvane. Na letra da lei, Albuquerque foi cassado não pela suspeita de encomendar a execução da colega, mas por ter mantido contato amistoso com o pistoleiro “Chapéu de Couro”. A cassação foi aprovada pela Comissão de Comissão e Justiça (CCJ) e confirmada em plenário por 427 votos a 29 em abril de 1999.
O autor intelectual e os quatro executores, porém, só viriam a ser julgados pelo crime mais de uma década depois. O vaivém de competências, indo e vindo entre esferas estadual e federal, dá o tom da estratégia da defesa: em fevereiro de 1999, é aberto o processo no Supremo Tribunal Federal (STF); em março de 1999, Talvane é cassado e o caso vai à Justiça estadual; o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) demora quatro anos para se dizer incompetente, em 2003; sete anos depois, em 2010, o STF devolve o caso à justiça alagoana; o TJ-AL, em 2011, volta a se dizer incompetente. Assim se foram 13 anos. O júri, no entanto, só precisou de três dias para condenar os cinco réus. Somadas, as penas deles chegaram aos 476 anos.
O hoje senador Rodrigo Cunha (Podemos-AL) tinha 17 anos quando mãe, pai e avó foram vítimas da chacina. Formado em Direito, passou a se engajar na luta por justiça, que tardou a vir. “Buscava justiça por ter sido também vítima da violência”, afirma o senador em entrevista ao Estadão, na primeira oportunidade em que depõe, com detalhes, sobre a experiência pessoal diante do crime.
A principal iniciativa do filho para cobrar as autoridades foi o Queremos Justiça, uma espécie de “portal da transparência”, na analogia de Rodrigo, para expor o trâmite processual. O site esteve na ativa durante a década de 2000, numa era ainda incipiente da internet brasileira.
“O mandante do crime tinha recursos financeiros e contratou as maiores bancas jurídicas deste País para ganhar tempo”, critica Rodrigo. Hoje em dia, Talvane, mesmo com sentença superior a 100 anos, sequer está preso: a pena progrediu para o regime semiaberto e, na prática, o ex-deputado está em casa. “Criminoso rico não vai para a cadeia”, diz Rodrigo Cunha.
Confira, a seguir, o depoimento do senador sobre o trâmite do caso na Justiça e o legado de Ceci:
O que foi o site Queremos Justiça? Qual foi o papel dessa iniciativa para pressionar a justiça a tomar uma decisão?
Durante muitos anos, lutei por justiça. O caso teve repercussão nacional, mas o tempo foi passando e comecei a perceber também mudanças de posturas. Eu buscava justiça por ter sido também vítima da violência. Quando eu ia conversar com juiz, desembargador, promotor, procurador, a porta sempre estava aberta, não tinha dificuldade em agendar nem em ser recebido. Mas se passou um, dois meses, dois, três anos, e a postura começou a mudar.
A minha busca sempre foi no sentido de dar celeridade, não deixar o projeto ficar dormindo na gaveta. Deixar o caso vivo era uma estratégia, até porque a pressão popular conta muito para o andamento. O Queremos Justiça surgiu para criar um cronograma de cobranças aos que tinham prazos para se manifestar no processo. Eu precisava criar um um constrangimento positivo, digamos assim. É como se eu tivesse criado um portal da transparência, para fazer com que tivesse celeridade.
Ao mesmo tempo, acabei entrando nesse mundo de famílias vítimas da violência. Aos que ficam aqui, os familiares, eles acabam sendo vítimas também. No Brasil inteiro, comecei a conversar com pais que perderam os filhos de forma violenta, esposas que perderam maridos, enfim, a ideia também era expor esses casos, parecidos com o que aconteceu na minha família e como forma de dizermos há quanto tempo esperávamos por justiça.
A minha busca sempre foi no sentido de dar celeridade, não deixar o projeto ficar dormindo na gaveta. Deixar o caso vivo era uma estratégia, até porque a pressão popular conta muito para o andamento.
Rodrigo Cunha, senador e filho de Ceci Cunha
O Queremos Justiça surge também para expor a certeza que eu tinha da autoria do crime, disponibilizando no site as provas cabais do processo, como vídeos, interceptações telefônicas e confissões. Tudo isso me fazia ter essa certeza, não era algo apenas irracional ou emocional. Era lógico. Quem analisou o processo vai chegar à mesma conclusão que eu.
Como o senhor avalia a morosidade da justiça na apreciação do caso, expressa sobretudo no vaivém de competências?
Por isso falamos que criminoso rico não vai para a cadeia. Infelizmente, existem muitas brechas e interferências do poder econômico. O mandante do crime era um deputado federal dono de hospitais, tinha recursos financeiros e contratou as maiores bancas jurídicas deste País para ganhar tempo. Ele também buscou usar suas influências sobre os que poderiam se manifestar no processo.
Toda a condução do caso me fez ter a certeza absoluta de que o Direito, muitas vezes, pode caminhar de um lado diferente ao da justiça. Sou um garantista, mas o Direito dá essa possibilidade de ganhar tempo e, nesse caso, o tempo corria contra, pois o assassino estava solto e o poder de influência era grande.
Por mais que a autoria intelectual já estivesse calculada à ocasião do inquérito, o mandante do crime sequer poderia ser indiciado antes de perder o mandato, pois gozava de imunidade parlamentar. De que forma o senhor avalia esse dispositivo, na época do crime e hoje em dia?
A imunidade parlamentar, muitas vezes, serve como instrumento não de imunidade, mas de impunidade. Com o foro, você sai de uma esfera e vai para outra. Às vezes um processo já está tramitando há X anos, você vira deputado, surge uma dúvida e o processo já vai para a esfera federal; se forem aproveitados os atos, há todo um trâmite para tal; depois, se você deixa de ser deputado, o processo pode mudar mais uma vez de esfera. Acaba se tornando uma questão estratégica ficar mudando de competência e tentar anular atos feitos na esfera competente em cada momento.
A imunidade parlamentar, para mim, é um grande estímulo à violência, porque o maior combustível para a violência é a impunidade
Rodrigo Cunha, senador e filho de Ceci Cunha
A imunidade parlamentar, para mim, é um grande estímulo à violência, porque o maior combustível para a violência é a impunidade. Quando você busca uma imunidade para ter um julgamento diferenciado, isso favorece demais a impunidade. Hoje em dia, muitos atores têm, através das esferas jurídicas federal e estadual, a possibilidade de apostar no tempo para fazer prescrever vários crimes. No caso dos meus pais, a dúvida sobre a competência foi ventilada em todos os momentos do processo.
As lideranças do Congresso Nacional cogitaram, por um breve momento, que Talvane Albuquerque não assumisse a cadeira na Câmara. A posse, no entanto, foi adiante. As instituições erraram ao permitir que o suposto mandante de um crime assumisse o mandato da própria vítima?
As provas eram contundentes e demonstraram o tempo todo a autoria intelectual do suspeito. Eu acho que a Câmara dos Deputados fez um excelente papel, seguiu todo o trâmite necessário e não permitiu a continuidade dele [no mandato], que seria como uma premiação. O direito existe, então sigamos o passo a passo, que foi seguido de modo a não haver nenhum atropelo.
Ele foi cassado e esse clamor social que mencionei teve, sim, importância nessa decisão. Minha mãe era uma pessoa muito querida, extremamente carismática, solícita, não tinha inimigos. O legado dela com certeza influenciou para que houvesse a cassação. Foi uma exceção à regra. A regra é criar um cooperativismo, uma proteção, mas esse caso foi muito escandaloso.
Minha mãe era uma pessoa muito querida, extremamente carismática, solícita, não tinha inimigos. O legado dela com certeza influenciou para que houvesse a cassação. Foi uma exceção à regra.
Rodrigo Cunha, senador e filho de Ceci Cunha
O relatório da comissão de sindicância da Câmara critica a atuação da Polícia Civil de Alagoas no caso. O senhor teria alguma crítica ao modo como esse inquérito foi conduzido?
Lembro que foi falado à época que na polícia de Alagoas faltou combustível. Não tinham a estrutura necessária para fazer as investigações, tanto é que [os condenados] fugiram e chegaram até o Paraguai para obterem passaportes, a fim de esquematizar outra fuga.
Foi ventilado durante as eleições de 2022 que o senhor não teria apoiado publicamente a recondução do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) porque, enquanto deputado federal, ele defendeu a manutenção do mandato de Talvane Albuquerque. Isto procede?
Eu sempre tive uma postura independente. [O Caso Ceci] Permeia todas as minhas decisões, mas o que me fez não me posicionar é que eu não gostaria de contribuir para a polarização deste País. E eu busco sempre um representante com o qual eu me identifique para me associar, o que não foi o caso. O meu apoio ou não ao Bolsonaro ou ao Lula ou a quem quer que fosse já tinha sido externado.
Você não vai achar nenhum discurso meu em cima desse tema. É um assunto muito particular, está dentro do meu íntimo e busco conduzi-lo de modo que ele não sobreponha minha posição pessoal sobre a confiança das pessoas que me colocaram para representar o Estado inteiro. Então, não foi apenas esse elemento. Até chegar nisso, que é de cunho extremamente pessoal, houve outras questões. Esse assunto não faz parte do meu direcionamento político e não me levaria a ter um posicionamento favorável a uma ou outra candidatura.
Na década de 1990, a violência política estava generalizada em Alagoas. A que se devia esse cenário e o que poderia ter sido diferente para evitar os crimes políticos?
Volto a mencionar a impunidade, o maior combustível para a violência. Vários crimes políticos ocorreram em Alagoas e estão até hoje sem elucidação e condenação. Para alguns com índole ruim, acaba compensando fazer de tudo para ter uma imunidade parlamentar, por meio de mandato eletivo, e apostar nessa dilatação do tempo para não ser condenado. A diferença entre Alagoas e Rio de Janeiro é que lá não existe bala perdida; a bala lá tem direção. Quase que um mantra: entrar na política era estar protegido. Existem muitos casos semelhantes [ao de Ceci] sem solução até hoje. A cidade inteira, a família, a imprensa, a polícia, todos sabem quem foi, mas não há a condenação que se espera.
A pena do autor intelectual passou dos 100 anos, mas ele não cumpriu nem um décimo disso em regime fechado. Como o senhor avalia os atenuantes aplicados?
[Hoje em dia] Ele está em casa. Ou seja: ganhou o carimbo de condenado, mas sequer está na cadeia, onde deveria estar. É triste saber disso. São atenuantes demais. Foi condenado a 103 anos, nossa legislação fala que se cumprem apenas 30. Dos 30, cumpriu 11 e está em liberdade. É extremamente desrespeitoso com toda a história de uma família, além de aumentar a descrença das pessoas na justiça. Haver vários atenuantes mesmo depois da fixação de uma pena superior a 100 anos é algo inaceitável.
Ele está em casa. Ou seja: ganhou o carimbo de condenado, mas sequer está na cadeia, onde deveria estar. É triste saber disso.
Rodrigo Cunha, senador e filho de Ceci Cunha
E de que forma Ceci lhe inspira no âmbito pessoal e político?
Posso lhe garantir que ela foi uma excelente médica, a popularidade dela cresceu exatamente por conta disso. Fez grande diferença na vida de muitos pacientes. Ela era obstetra, colocava as crianças no mundo e muitos desses pacientes se tornaram compadres e comadres. Minha mãe veio de uma família de agricultores e chegou onde esteve por conta dos estudos. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite e ainda arrumava tempo para cuidar dos filhos. Me ensinou os princípios que eu carrego até hoje e que são inegociáveis. E cresceu fazendo política da maneira mais difícil, que é fazendo o bem. Foi a primeira deputada federal da história de Alagoas e a história de superação dela inspira muito quem a via em casa.
A maior inspiração que tenho na vida é ela, pois me demonstrou que o tempo é curto. A vida é curta, mas não precisa ser pequena. Temos que aproveitar nosso tempo para fazer a diferença na sociedade e na vida dos outros. Ver ruas e escolas levando o nome dela é motivo de alegria para mim e mostra que a passagem dela por aqui não foi em vão.
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