No dia 22 de agosto de 1532, a primeira eleição das Américas foi realizada na então Vila de São Vicente, atual município de São Vicente, no litoral paulista. O fato histórico tem características curiosas, que envolvem desde a escolha – por votação – de eleitores aptos a participar do pleito até a proclamação dos eleitos.
O começo do processo eleitoral de quase meio milênio chama atenção pelo modo utilizado para escolha dos eleitores, em um primeiro momento. “Homens bons” –nome dado a época a nobres de linhagem, senhores de engenho e membros da alta burocracia militar – e “homens novos”, burgueses enriquecidos pelo comércio, cochichavam ao pé do ouvido do escrivão o nome de seis pessoas. Ao final, os seis mais citados, agora eleitores, eram convocados para participação na escolha de vereadores, juízes e procuradores da Vila de São Vicente.
Os seis escolhidos por votação eram divididos em três duplas. Para demonstrar a lisura do processo eleitoral, evitava-se colocar parentes nas duplas e era proibida a comunicação entre eles. Esses grupos apresentavam nove listas, cada uma com três nomes de possíveis aptos a ocupar os cargos. Depois, havia diminuição para apenas três listas, definidas pelo juiz mais velho da região.
“O eleitor apto a votar não votava diretamente. Na verdade, ele votava em alguém que seria um membro do colégio eleitoral e que estaria apto a votar. Não havia o conceito de sigilo de voto, como nós temos hoje com as urnas e, antes, com as cédulas escritas. Logo, para manter o conforto e não haver uma perseguição política na manifestação de interesse, cochichava-se no ouvido do escrivão, que era uma figura pública e tinha que manter a reserva inerente ao cargo”, explica Rubens Beçak, professor da USP, mestre e doutor em direito constitucional e livre-docente em teoria geral do Estado.
As três listas finais com os nomes dos escolhidos para governar eram colocadas em bolas de cera, chamadas de pelouros, e guardadas em um cofre. Os responsáveis pela proteção eram vereadores da legislatura anterior. No começo de cada ano, o cofre era aberto e um menino de até sete anos sorteava um pelouro. Os nomes da lista sorteada ocupavam os cargos durante aquele ano. Nos dois anos seguintes, o mesmo processo era realizado. No quarto ano, nova eleição.
“Temos sempre que pensar no ponto de vista do quê é a história. É difícil comparar com o século 16, pois a democracia moderna não tinha nem sequer sido inventada — era no máximo uma lembrança do que havia sido na Antiguidade, na Grécia Antiga. O que podemos dizer é que, utilizando os óculos de hoje, aqueles processos eram curiosos. Não se comparam à abrangência de democraticidade e sigilo que nós temos atualmente, mas de certa maneira funcionavam, especialmente se comparados às outras colônias que não tinham essa possibilidade de voto”, analisa Beçak.
Eduardo Lima, mestre em história social pela Unesp, afirma que as eleições locais tornaram as Câmaras Municipais uma das instituições mais antigas do Brasil. “É da Câmara Municipal que começam a surgir as grandes lideranças, e é dela que começa a surgir a prática da política”, disse.
Lima explica que o processo eleitoral do período colonial não envolvia a Corte portuguesa, o que privilegiava ações políticas de homens ricos e fazendeiros. “Eram os grandes senhores que podiam votar. Eles definiam tudo: a vida civil, criminal e também eleitoral. Logicamente havia algumas ordenações portuguesas que davam as bases, mas aí eu fico com a palavra de José Murilo de Carvalho: no Brasil colônia, o poder do Estado acabava na porteira da fazenda. Então, não tinha cidadania, não tinha cidadão, não tinha eleitor, ninguém entendia nem o que era Direito”, afirma.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibiliza na biblioteca digital da Justiça Eleitoral livros e exposições sobre a evolução do processo eleitoral brasileiro. Uma das publicações é Eleições no Brasil: Uma História de 500 anos, de Ane Ferrari Ramos Cajado, Thiago Dornelles e Amanda Camylla Pereira, lançado em 2014, que conta essa narrativa de 1532.
Evolução da cidadania
O historiador Lima também avalia que a evolução do processo eleitoral no Brasil coincide com a evolução da cidadania. As melhorias, de fato, ocorrem no período republicano.
“Das primeiras eleições que nós vamos ter no Brasil até a libertação dos escravos e o início da República, havia uma diferença entre os que eram pessoas e os que não eram pessoas, seja pela questão dos escravos, seja pela da mulher e dos pobres, analfabetos”, explica Lima, citando grupos que não votavam.
“Era tanto requisito que a gente não conseguia colocar minimamente um número de pessoas para que elas pudessem ser chamadas de eleitores. Eram privilegiados que escolhiam representantes (...). Começamos a melhorar um pouco na questão dos direitos na Era Vargas, mas foi por pouco tempo, porque ele também já se torna um grande ditador. A gente só vai conseguir o eleitor de verdade, enquanto estrutura, a partir de 1988, com a Constituição cidadã”, explicou.
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