Nas últimas eleições municipais, realizadas em 2020, apenas 12% dos municípios brasileiros elegeram mulheres para suas prefeituras. Há 96 anos, apenas uma cidade do País teve o mesmo feito. Lajes, no interior do Rio Grande do Norte, elegeu a primeira prefeita da história do País e da América Latina. Alzira Soriano tomou posse no ano seguinte, 1929, com 60% dos votos em uma época em que o sufrágio feminino sequer era permitido no resto do Brasil.
Alzira casou-se com Thomaz Soriano de Souza Filho, um promotor com quem teve três filhas. O marido faleceu depois de contrair gripe espanhola, e a futura prefeita acabou voltando para a fazenda de seu pai, ficando responsável por administrar a Primavera – nome dado à fazenda. Ela começou a se interessar por política e pela vida pública por conta de reuniões organizadas por seu pai, o coronel Miguel Teixeira de Vasconcelos. O coronel tinha bastante influência política na região, fazendo com que muitas decisões de poder fossem tomadas do lado de dentro dos muros da fazenda Primavera.
Alzira, aliás, sempre esteve à frente das campanhas de seu pai, que foi prefeito da cidade entre 1914 e 1917. Ela nasceu, mais precisamente, em Jardim de Angicos, que tinha Lajes como um de seus distritos. Em 1914, a decisão tomada por seu pai de não deixar com que uma ferrovia que estava sendo construída passasse pelos Angicos com medo de prejudicar a criação de gado – atividade econômica primária da região –, impulsionou o desenvolvimento de Lajes (por onde os trilhos passavam). Dessa forma, a mudança da sede do município foi feita. Jardim de Angicos recuperou o status de município depois de quase 50 anos, em 1962.
Ela foi convencida de que deveria se candidatar ao cargo de mandatária da cidade durante um desses encontros na Primavera, e concorreu pelo partido Republicano da época. As alianças coronelistas, nesse período, eram muito comuns para sustentar uma candidatura política. Então, além de contar com o apoio de seu pai coronel, Alzira também era apoiada pelo governador do Estado, Juvenal Lamartine.
Lamartine começou atuando como senador e se destacou no cenário político do Rio Grande do Norte por seu apoio a diversas causas progressistas, como o sufrágio feminino. Ele se tornou governador em janeiro de 1928.
Sua eleição também foi apoiada pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada pela feminista Bertha Lutz, figura central no movimento feminista do País. Defensora do direito ao voto feminino, Bertha conheceu Alzira em um evento organizado por Lamartine na fazenda Primavera. Segundo relatos, Lutz teria ficado impressionada com a determinação da filha do coronel e, depois de uma aproximação das duas, o convite para se candidatar à Prefeitura de Lajes foi reforçado pela liderança feminista. Isso tudo aconteceu quando a futura prefeita tinha 31 anos. “Esta é a mulher que estamos procurando”, teria dito Lutz a Lamartine.
O período de campanha foi conturbado e recheado de ataques pessoais dos adversários contra Alzira. Para desmotivá-la, seus concorrentes diziam que “mulher pública é prostituta” e que seria “demais”, no sentido negativo, uma cidade ser governada por alguém que não fosse um homem. No entanto, o apoio de seu pai e do governador eram cruciais para a manutenção de sua candidatura naquele momento.
Com 60% dos votos, sobre o oponente Sérvulo Pires Neto, Alzira foi eleita a primeira prefeita do Brasil em 2 de setembro de 1928 e iniciou seu mandato no começo de 1929. Seu governo iniciou obras em vias públicas, abriu novas estradas, promoveu a abertura de mercados e escolas e estendeu a rede de iluminação pública – o que foi essencial para o desenvolvimento da infraestrutura de Lajes. Assim como no período de campanha, a oposição usava a misoginia como forma de ataque à prefeita. Pires Neto, com vergonha de ter perdido o pleito para uma mulher, abandonou a política logo em seguida.
A prefeita concedeu uma entrevista publicada na edição de 1º de janeiro de 1929 do caderno ‘Feminismo’ do extinto jornal O Paiz, em que dizia: “O movimento em prol da emancipação política da mulher é uma dessas novas facetas da organização social, preparada pela necessidade da mentalidade da época. Não se suporta mais a estreiteza dos direitos políticos.”
A política é um mecanismo do qual conheço peça por peça e se adapta perfeitamente ao meu temperamento. Sempre tem sido uma das minhas maiores aspirações ter uma participação direta na política.
Alzira Soriano, em entrevista para o extinto jornal O Paiz
A repercussão de sua eleição não ficou restrita ao Brasil. O jornal norte-americano The New York Times chegou a anunciar a vitória da primeira prefeita mulher do País chamando Lajes de “cidade americanizada”.
Seu período de administração foi curto, já que perdeu o mandato com a Revolução de 1930. Na época, o governo de Getúlio Vargas substituiu os governantes por interventores. Há quem diga que ela foi convidada pelo governo federal a permanecer no cargo como interventora, mas se recusou por não concordar com a forma de governar de Vargas.
Foi somente em 1945, com o fim da era Vargas, que Alzira Soriano retornou à vida pública. Ela se elegeu vereadora do distrito de Jardim de Angicos, onde nasceu, e foi presidente da Câmara de Vereadores por mais de uma vez. Por conta de complicações de um câncer, a primeira prefeita do País morreu em maio de 1963, aos 67 anos.
Lei estadual de 1927 garantiu às mulheres o direito de votar e ser votadas
As mulheres só puderem votar em todo o Brasil no ano de 1932 durante o governo de Vargas pelo Código Eleitoral Provisório de 32, pelo Decreto nº 21.076, que dizia que era eleitor “o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”. Ele só foi incorporado à Constituição em 1934, de maneira facultativa. No entanto, a inclusão do sufrágio feminino no Rio Grande do Norte aconteceu antes disso por conta de uma lei estadual em 25 de outubro de 1927, segundo registros do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RN) do Estado.
O Artigo 77 das Disposições Gerais do Capítulo XII da lei estadual nº 660 determinava que “No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”. O governador da época, José Augusto Bezerra de Medeiros, que antecedeu Lamartine, justificou a lei com base em uma revisão da Constituição de 1891, a vigente na época, que não distinguia homens e mulheres para que fosse aplicado o direito ao voto, considerando todos como cidadãos, independentemente do gênero.
Um mês após a publicação da lei, em 27 de novembro, a professora Celina Guimarães Viana, aos 29 anos de idade, encaminhou um pedido para ser incluída no rol de eleitores do estado. No mesmo dia seu pedido foi aceito e ela tornou-se a primeira mulher apta a votar em toda a América do Sul, conforme registros do TRE-RN.
E hoje? Como é a participação feminina nas eleições?
Dados do TSE Mulher, plataforma do Tribunal Superior Eleitoral que compartilha informações sobre a participação feminina nas eleições, indicam que, entre 2016 e 2022, apesar de as mulheres constituírem a maioria do eleitorado brasileiro (52%), somente 33% dos candidatos aos cargos em disputa eram do sexo feminino. Esse percentual diminui ainda mais ao considerarmos as efetivamente eleitas, que representam apenas 15%.
Inclusive, nas últimas eleições municipais, ocorridas em 2020, 63% dos municípios brasileiros não tiveram candidaturas femininas concorrendo às prefeituras. Considerando todas as pessoas, de ambos os gêneros, que ganharam a disputa para o comando de alguma cidade naquele ano, somente 12% eram mulheres. Para as câmaras municipais, todas as 5.568 cidades tinham candidatas mulheres, mas 935 não elegeram nenhuma vereadora.
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