Milhares de manifestantes caminham em direção ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, gritando palavras de ordem e segurando cartazes. No alto de um trio elétrico, um político carismático conduz a multidão com ataques ao grupo adversário. A despeito da ideologia, esse tem sido o cenário das manifestações na capital paulista desde 25 de agosto de 1992, quando 120 mil pessoas marcharam a partir do vão livre do Masp pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor.
A estimativa de público foi divulgada pela Polícia Militar (PM) à época. O Estadão noticiou, na edição de 26 de agosto daquele ano, que os manifestantes ocuparam cinco quadras da Paulista, entre a Rua Peixoto Gomide e a Avenida Brigadeiro Luís Antônio. A passeata contra Collor foi organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e integrava o movimento dos “caras-pintadas”. A marcha estudantil terminou numa concentração no Vale do Anhangabaú, que reuniu cerca de 200 mil pessoas, ainda segundo a PM. (Veja mais sobre o ato abaixo).
Collor não resistiria à pressão popular, perdendo o mandato em dezembro daquele ano. Porém, as consequências dos atos promovidos pelos caras-pintadas não se restringiram ao impedimento de um presidente da República. Para o professor Paulo Niccoli Ramirez, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), o movimento foi o principal responsável por deslocar o eixo de manifestações da Praça da Sé e do Vale do Anhangabaú para a Avenida Paulista.
Ramirez explica que o golpe militar, em 1964, impôs um período sem grandes manifestações no País. Esse “apagão de atos políticos” só foi interrompido com as greves de metalúrgicos no ABC Paulista em 1978. A partir de 1983, as manifestações voltaram à capital paulista com a campanha das Diretas Já. Mas o movimento pró-democracia não realizou comícios na Avenida Paulista, e sim na Praça da Sé, que chegou a receber 250 mil pessoas no dia 25 de janeiro de 1984, segundo noticiado na época pela imprensa.
O professor da FESPSP conta que o deslocamento do eixo de manifestações para a Paulista ocorreu por múltiplos fatores. A deterioração do centro e o abandono da região central por parte do poder público é um deles, mas não explica todo o fenômeno. “Outro fator é que a Paulista é o centro financeiro do País. Simbolicamente, ocupar a Paulista é também ocupar o lugar mais relevante da cidade. Isso tem um apelo político e econômico muito forte”, diz Ramirez.
Ele ainda afirma que as manifestações dos caras-pintadas foram o “ponto culminante da transferência da Sé e do Anhangabaú para a Paulista”. Nesse contexto, é importante entender que o movimento era composto por jovens universitários de classe média que já frequentavam as galerias e os bares da Paulista. Essa proximidade dos caras-pintadas com a região favoreceu que as concentrações ocorressem em frente ao Masp.
Outro elemento essencial para entender o fenômeno é a ocupação da Paulista por eventos não necessariamente políticos, como a Corrida de São Silvestre e a comemoração do réveillon. Nesse contexto, Ramirez destaca a participação dos clubes de futebol em fazer com que a população normalizasse a ocupação da Paulista. Isso porque os times da capital tradicionalmente comemoram as conquistas de títulos na avenida. “De alguma forma, o futebol também foi lançando as sementes para que a Paulista se tornasse relevante”, conta.
De Paris paulistana a palco de manifestações
Inspirada nos boulevards de Paris, a Avenida Paulista surgiu como uma área residencial no final do século 19, abrigando os palacetes e as mansões dos barões do café. Foi com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, que a avenida se transformou por completo. Isso porque parte da elite paulistana foi afetada pela crise econômica, sendo obrigada a vender seus casarões para investidores, que, anos mais tarde, ergueram edifícios na região.
Entre as décadas de 1950 e 1960, o processo de verticalização da Paulista se intensificou com a construção dos primeiros grandes edifícios residenciais, como o Saint Honoré e o Conjunto Nacional. Logo após, vieram as sedes de bancos e corporações, que moldaram o cenário atual da avenida.
A primeira manifestação na Paulista ocorreu em 1976, quando boiadeiros reagiram às suas condições de trabalho, relata a professora Maria Margarida Cavalcanti Limena, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no livro “Avenida Paulista: imagens da metrópole”.
Ramirez considera que atualmente a Paulista pode ser definida pelo conceito de “campo”, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-1922). Ou seja, um espaço simbólico, em que lutas de agentes determinam, validam, legitimam representações. “Sempre que ocorre uma manifestação na Paulista, há o debate sobre o número de pessoas no ato. Ou seja, quanto mais gente nas ruas, maior a sensação de que existe um apoio massivo sobre determinado tema. A ocupação das ruas é um instrumento de pressão política”, conta o professor da FESPSP, que considera que, hoje, a Paulista é um espaço de disputa entre esquerda e direita.
Veja como foi a cobertura do ato pelo impeachment de Collor em 26 de agosto de 1992:
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