O vírus atingiu o coração do governo. A expressão é literal, considerando a situação do general Augusto Heleno e do almirante Bento Albuquerque, mas seu sentido é político. Um caso clássico de como a realidade dos fatos se impõe de forma arrasadora a quem se recusa a enxergá-la.
Ou o faz – enxergar os fatos – sob uma perspectiva completamente equivocada. Foi o que aconteceu com Jair Bolsonaro e alguns de seus conselheiros mais próximos, especialmente os filhos. Presos à versão, estapafúrdia e maluca, como agora se vê, de que o coronavírus seria uma conspiração chinesa aqui utilizada por “elites políticas” para isolar e depor o presidente.
As forças políticas que entendem melhor a realidade (como o “Centrão”) ocuparam rapidamente o espaço que Bolsonaro vem deixando livre desde que assumiu a Presidência. Como já se disse aqui, o presidente acha que sua força vem da caneta que assina cheques e nomeações quando, na verdade, está na sua imensa capacidade de ditar a agenda política. À qual ele pouco se dedicou.
Pode-se até falar de um autoimposto isolamento diante de um “sistema” que, por um lado, de vez em quando, servia ao presidente e a cujas regras obedecia. Por outro, era pelo presidente mencionado como alvo a ser destruído – o mandato que ele afirma ter recebido das urnas.
O isolamento ganhou contornos nítidos e de claro perigo para a autoridade presidencial quando Judiciário e Legislativo, com a participação de órgãos de controle e investigação (TCU e PGR), montaram por dois dias um “gabinete paralelo de crise” que incluía, pelo Executivo, um competente ministro da Saúde cujo destaque causa no presidente ciúmes em vez de orgulho.
É essa perda de autoridade, mesmo entre grupos favoráveis ao presidente, que causou consternação entre alguns de seus ministros mais importantes, que duvidavam da tática determinada por Bolsonaro de ir às ruas para pressionar Congresso e STF. Há ministros militares preocupados com o que chamam de “belicosidade” do presidente. “Ele apanhou muito, quer revidar”, diz um deles, que dá expediente no Planalto, “e ninguém consegue segurar”.
O corrosivo processo se acentua diante de uma percepção generalizada de que o governo está correndo atrás dos fatos. Essa noção se intensificou por dois fatores: a reação inicial do presidente de minimizar a gravidade da doença (erro que Trump se apressou mais rapidamente a corrigir) e a intensidade e vigor com que as principais economias lançaram medidas para enfrentar uma previsível recessão, enquanto no Brasil a conversa inicial foi “aprovem as reformas e a gente segura o tranco”.
A crise do coronavírus apanha o Brasil num momento vulnerável. Se é verdade, como reitera Paulo Guedes, que o País estava decolando e foi surpreendido pela crise, também não se pode ignorar que a lição de casa em termos fiscais mal tinha começado a ser feita. O Brasil, como país emergente, será sempre julgado pela sua saúde fiscal, e a nossa não é boa de forma alguma. E vamos ter de enfiar a mão fundo nos cofres públicos já encrencados em todos os níveis.
As consequências para a economia consegue-se antever, e não são das mais róseas. As consequências do vírus para a política indicam que o inimigo impessoal, como o vírus, pode servir de justificativa até aceitável para resultados pobres num setor definidor de simpatias políticas, como o bem-estar econômico geral da população, mas é mais difícil de ser combatido no habitual esquema bolsonarista de “nós” contra “eles”.
Há paralelos entre a propagação de um vírus e a criação de um “momento” na política. Começa com pouca gente notando, mas, a partir de certo ponto, a propagação do vírus do descontentamento ou aberta antipatia com um governo e sua figura de proa foge ao controle. O coronavírus é uma ameaça grave para Jair Bolsonaro.
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