Há duas semanas, o analista de logística Mohsen Kabiry, de 38 anos, pegava um voo só de ida para o Brasil com a esperança de fugir da escalada violenta no Afeganistão. Nesta quinta-feira, 29, ele e a e a família de mais nove integrantes se preparavam para dormir mais uma noite no chão do mezanino do Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Sem saber falar inglês, ele pediu ajuda a outro afegão para dizer que metade seus familiares ainda estava com escabiose, conhecida como sarna humana.
Um surto da doença atinge os refugiados acampados no aeroporto há cerca de uma semana. Conforme a prefeitura de Guarulhos, os primeiros três casos foram diagnosticados no dia 22, o que motivou o envio de remédios para os afegãos que dormiam no local na ocasião. Ao todo, 21 ocorrências de escabiose foram confirmadas pela gestão municipal desde então. Mas, segundo voluntários que auxiliam na acolhida de refugiados no aeroporto, o total já está próximo de 30.
Cerca de 175 afegãos dormem no aeroporto atualmente. A situação se estende há cerca de um ano, após o Brasil conceder visto humanitário aos afegãos por conta da tomada de poder pelo grupo extremista Taleban. Nesta quinta, representantes dos governos federal e estadual se reuniram por lá com o prefeito de Guarulhos, Guti (PSD), para discutir soluções. A expectativa é apresentar novas medidas em breve.
O que está acontecendo é uma tragédia anunciada
Aline Sobral, voluntária
“O que está acontecendo é uma tragédia anunciada. A gente já sabia disso (condições precárias) desde agosto do ano passado, quando eles já passavam 15, 20 dias sem banho”, disse Aline Sobral, atual presidente do Coletivo Frente Afegã. O grupo, que hoje reúne 120 voluntários, auxilia no acolhimento dos afegãos que chegam ao País há praticamente um ano.
O coletivo ajuda os refugiados com itens de necessidade básica, compra remédios quando necessário, dá suporte em traduções e busca ser a ponte dos afegãos com o poder público. Centenas já foram encaminhados para abrigos, mas novos refugiados chegam dia após dia do Oriente Médio. Sem ter para onde ir, eles se instalam no chão do maior aeroporto do País.
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‘Não tomei banho por uma semana’
No Brasil há duas semanas, o casal de artistas Nematollah Vali, 29, e Forouzan Sediqi, 28, é um dos afetados pelo surto de sarna. “Quando cheguei, não tomei banho por uma semana, então comecei a enfrentar problemas com minha pele”, disse Forouzan. Na maioria dos dias, os afegãos não têm acesso a banheiros com chuveiro no aeroporto. “Por sorte, conseguiram me levar para tomar banho e melhorou um pouco.”
Para se higienizar, muitos têm a ajuda de voluntários e até de um hotel na região, que disponibiliza cerca de 20 banhos diários aos refugiados. Mas outros tipos de problemas são relatados. Afegãos ouvidos pela reportagem se queixam de mofo e infiltração nas paredes, cheiro ruim nas cobertas e dificuldade de se adaptar. “Por quatro dias, só comi biscoito e água”, disse Forouzan.
Ainda assim, a expectativa dos que chegam é trazer o restante da família para reconstruir a vida. “Minha profissão lá era trabalhar madeira com as minhas mãos: arte em madeira, também fazia mobílias. Gostaria de fazer isso por aqui”, disse a jovem. Nas mãos, ela exibe com orgulho uma pequena caixa de madeira com uma arte talhada por ela própria. “É isso que faço.”
Nematollah também se queixa das condições – faz questão de levar a reportagem até a barraca para mostrar – , mas se apega à oportunidade de recomeçar. Ex-moradores de Cabul, ele e a mulher foram até o Irã para conseguir o voo até o Brasil. “O Taleban não deixa as pessoas viverem, especialmente mulheres. Elas não têm permissão para sair de casa, trabalhar, adquirir conhecimento.”
No caso do designer gráfico Samir Said Zaide, de 27 anos, a alternativa para fugir da repressão do Taleban foi ir à Turquia, em uma rota um pouco menos usual tomada pelos afegãos que chegam ao País. Há um mês no Brasil, ele teve pressa de vir porque trabalhava para o governo anterior. “Estamos gratos pelo Brasil nos acolher, mas precisamos de um lugar digno para viver.”
Com inglês em nível intermediário, Samir se voluntariou para ajudar os afegãos que não falam inglês a se comunicarem no aeroporto. No peito, um crachá dizendo que poderiam contar com ele. “São como meus irmãos, meus pais, minhas irmãs. Quero trabalhar de graça para eles, quero sobreviver por eles.”
Estamos gratos pelo Brasil nos acolher, mas precisamos de um lugar digno para viver
Samir Said Zaide, refugiado
Segundo o Coletivo Frente Afegã, são 175 refugiados acampados no aeroporto, todos muçulmanos. Só nesta semana, foram 35 novos acolhidos, o que mostra como o grupo tem mudado a cada semana. Em geral, os refugiados ficam em torno de três semanas esperando acolhimento. Cerca de 3 a 4 voos chegam por dia do Oriente Médio, com a possibilidade de trazer novos afegãos precisando de ajuda.
Refugiados passaram por mudança de perfil
O perfil dos refugiados que chegam ao Brasil têm mudado ao longo dos últimos meses, segundo o Coletivo Frente Afegã. Aline Sobral, presidente do grupo, diz que o predomínio ainda é de famílias numerosas e de homens que vêm sozinhos antes de buscar as famílias, mas com poder aquisitivo bem abaixo do que há um ano.
“Esse grupo, a maioria, se você pegar o dia do visto, é da mesma época dos que vieram há um ano. Só que eles não tinham dinheiro para vir na época. Tiveram que vender tudo para conseguir comprar as passagens”, afirmou. Nas configurações iniciais, muitos dos que chegavam até o País eram militares, advogados e até embaixadores.
Na tarde desta quinta, representantes das três esferas de governo se reuniram no aeroporto para discutir soluções. Participaram também integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e do coletivo que atua no aeroporto. “A gente precisa mais do que tudo de uma política de interiorização”, disse Guti, prefeito de Guarulhos. “São 11 mil vistos emitidos ou na iminência de serem emitidos, e por aqui passaram 4 mil afegãos. Significa que a gente tem de 6 a 7 mil afegãos para entrar.”
Mais cedo, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, chegou a dizer que os afegãos seriam acolhidos em hotéis, de forma temporária, mas representantes dos governos federal e estadual afirmaram que a medida ainda está sendo avaliada.
“Esperamos que, nas próximas horas, a gente já tenha uma medida efetiva para dar em resposta à situação”, disse Renato Teixeira, ouvidor nacional dos Direitos Humanos. “A ouvidoria esteve presente e constatou grave violação aos direitos humanos dos nossos irmãos afegãos.”
De acordo com Arthur Lima, secretário-chefe da Casa Civil do Estado de São Paulo, a reunião desta quinta foi importante para delimitar atribuições e discutir possibilidades de acolhimento. “O governo do Estado de São Paulo já investiu mais de R$ 7 milhões nessa operação de acolhimento aos refugiados”, afirmou. “Mais de 800 afegãos já foram acolhidos pelo governo junto à prefeitura de Guarulhos.”
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou ter acolhido 718 afegãos entre janeiro e 20 de junho deste ano. Em todo o ano passado, foram 714. Só nesta quarta, 28, foram dez acolhidos, segundo a pasta. A gestão das vagas dos abrigos é feita pelo governo do Estado, com suporte de um centro de atendimento instalado em área de mezanino do terminal 2 pela prefeitura de Guarulhos. A gestão municipal também fornece refeições diariamente.
A GRU Airport, concessionária que administra o aeroporto, informou que tem contribuído no suporte à realização de procedimentos de higiene pessoal e manutenção de limpeza constante do espaço. “A higienização dos banheiros daquela área também foi intensificada“, disse. “O vestiário, por se tratar de uma área operacional destinada a funcionários, é viabilizado dentro das condições e disponibilidade do aeroporto, de acordo com um planejamento alinhado com a prefeitura de Guarulhos.”
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