Ainda é difícil para o motoboy Wilker Michel da Silva, de 32 anos, falar da noiva no passado. A exatos 20 dias de se casar, a auxiliar de farmácia Francisca Marcela da Silva Ribeiro, de 33 anos, foi morta com um tiro nas costas em tentativa de assalto em posto de gasolina no Ipiranga, zona sul de São Paulo. Ela foi enterrada com o vestido do casamento nessa quarta-feira, 9, em um povoado em Sigefredo Pacheco, no Piauí.
Imagens de câmeras de segurança do posto onde o caso ocorreu, que foram obtidas pelo Estadão, mostram que o casal foi abordado logo no começo da manhã do domingo, 6, por ao menos três bandidos, em duas motos. O alvo era a motocicleta de passeio de Wilker Michel, uma Triumph Tiger 800 XRX, avaliada em cerca de R$ 50 mil.
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O casal não apresentou resistência e entregou o veículo aos bandidos. Quando o trio ia fugir, o policial militar Daniel Lins Ferreira, que estava de folga, interveio. As imagens captadas no posto mostram que, além de mirar nos bandidos, ele direcionou a arma ao casal, embora os assaltantes estivessem fugindo para outro lado.
“Tenho certeza absoluta que o tiro (que atingiu Francisca Marcela) veio do policial. Porque olho no olho dele, vejo a ação, a arma disparando e, logo depois de ele dar três disparos em nossa direção, em questão de milésimos de segundos ela fala: ‘amor, tomei um tiro’”, disse Wilker Michel ao Estadão. “Pelo ângulo que ela estava, se a bala tivesse vindo do bandido teria atingido a parte da frente dela, e não as costas.”
Conforme o boletim de ocorrência, obtido pelo Estadão, o policial alegou que o posto de gasolina, na Avenida Presidente Tancredo Neves, estava tomado por cerca de dez bandidos (número maior do que mostram as imagens) e relatou dificuldade em identificar quem seriam as vítimas.
Ainda não há laudo que indique de onde partiu a bala que matou Francisca Marcela, mas a polícia abriu Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar o caso. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública disse que a Polícia Civil analisa as imagens.
Um relatório inicial da Polícia Civil, assinado pelo delegado Schayan Vago, do 26º Distrito Policial (Sacomã), unidade que atendeu a ocorrência inicialmente, aponta “claros indícios de que o disparo que determinou a morte da vítima Francisca Marcela teve origem da arma de fogo do policial militar Daniel”. O documento diz que o agente agiu em legítima defesa. O PM não foi afastado das atividades.
Desde domingo, Wilker Michel não conseguiu mais voltar para a casa onde morava com a noiva, em Heliópolis, também na zona sul. Na mão direita, ele tem levado um pedaço da camisa rosa que ela usava quando foi morta. Ele recebeu o Estadão nessa quarta-feira na casa da irmã, na mesma região onde mora. No peito, uma camisa com uma foto da vítima e um só pedido: Justiça por Marcela.
“A gente quer Justiça, que a morte dela não tenha sido em vão. Muita gente morre por erro de policiais, muita gente inocente morre por erro de policiais, por má conduta, por falta de treinamento”, disse. “Quero que a morte dela seja uma virada de chave nisso, ajude muitas pessoas e salve muitas vidas.”
No boletim de ocorrência, o PM disse não saber quantos disparos efetuou, mas, segundo Wilker Michel, ao menos três tiros foram dados pelo agente na direção do casal. “Um deles passou perto da minha cabeça”, disse.
Durante a ocorrência, dois suspeitos de praticar o roubo ficaram feridos e precisaram de atendimento médico. Conforme a Secretaria da Segurança Pública, após ser socorrida, a dupla foi localizada em um hospital e presa em flagrante. Um deles segue internado. O inquérito policial foi encaminhado ao 95° Distrito Policial (Heliópolis), que agora conduz as investigações.
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Casal estava indo viajar quando foi abordado
No dia em que o caso ocorreu, Wilker Michel e Francisca Marcela estavam prestes a sair da cidade de moto para ir a uma cafeteria em Nova Odessa, no interior. “Faço parte de um grupo de moto que sempre viaja domingo, faz bate e volta em algum lugar, para conhecer lugar novo”, disse o motoboy. “E ela gostava disso. Era apaixonada por viagem, por conhecer outros lugares.”
Ele relembra que o casal, que morava junto havia mais de sete anos, acordou bem cedo naquele dia, por volta de 5 horas. Os dois, então, foram ao posto de gasolina abastecer a moto e calibrar os pneus para a viagem. Era por volta de 6 horas quando, logo após ligar o intercomunicador do capacete da noiva – os dois gostavam de ficar conversando durante os passeios –, os bandidos chegaram.
“Eu não vi, porque eu estava de costas, olhando para ela. Mas ela falou: ‘amor, é um assalto, entrega a moto’. Levantei minhas mãos e comecei a tentar acalmar os bandidos, enquanto um deles gritou: ‘passa tudo, passa tudo’”, disse.
Além da moto, Wilker Michel deu o celular aos bandidos, mas eles desistiram de levar – segundo o motoboy, podem ter ficado com receio de serem rastreados. Ele e a noiva se ajoelharam e levantaram as mãos em rendição.
‘Para, para, é minha esposa’
Quando os bandidos iam saindo, já distribuídos em três motos, o que estava na moto de Wilker Michel foi abordado pelo policial de folga. “Ele largou minha moto e correu, mas longe de mim, a cerca de 20 metros”, disse. A surpresa foi quando, em vez de ir atrás do assaltante, o policial se virou para apontar a arma na direção do casal.
“O policial corre um pouquinho, dá um ou dois disparos no bandido, o bandido não dispara. Minha esposa já corre e fica atrás de uma grade (do posto). Ela achou que estava protegida por lá”, disse Wilker Michel. Ele conta que os dois ficaram um de costas para o outro nesse momento.
“O bandido corre para um lado, mas ele (policial) perde totalmente o foco do bandido e vem para o nosso lado”, disse. “Vem direto para a nossa direção, não olha mais para o bandido, se posiciona e abre fogo. E começo a gritar: ‘para, é minha esposa, é minha esposa’. Só depois ele para e corre, agora sim, atrás dos bandidos. Nisso, ouço no (intercomunicador do) meu capacete: ‘amor, tomei um tiro’.”
‘Você viu o que você fez?’
Quando ouviu aquilo, Wilker Michel conta que foi rapidamente até a noiva para apoiar suas costas e cabeça. Ela começou, então, a conversar com ele chorando e pediu para que tirasse o capacete, porque sentia dor e dificuldade de respirar. “Eu tentava pedir para ela respirar a todo momento.”
Nesse momento, testemunhas tentaram ajudar o casal, além de acionar socorro. Segundo ele, depois de correr atrás dos bandidos, o policial voltou ao posto, mas não se aproximou mais das vítimas. “Ele ficou a cerca de 20 metros da gente, com uma cara sem expressão alguma”, disse. “Eu gritei para ele: ‘você viu o que você fez? Por que você fez isso? Por que fez isso?’.”
O laudo médico, segundo ele, apontou que Francisca Marcela teve hemorragia interna e costelas quebradas. “Depois de oito minutos, ela simplesmente morreu nos meus braços. Quando a ambulância chegou, até conseguiram voltar os sinais vitais dela, mas já não respirava direito”, relatou.
Wilker ainda não conseguiu voltar para casa onde morava
Ainda sem forças para voltar para casa, Wilker Michel se enche de emoção para falar na noiva. “A gente era um casal trabalhador, que se amava. A gente só queria ficar junto. Todo tempo que tinha livre, a gente queria ficar junto”, disse.
Segundo ele, o domingo era o único dia na semana que o casal tinha de folga e podia passar mais tempo juntos. Por vezes, escolhiam ir ao cinema ou até ficar em casa assistindo TV – recentemente, ela estava viciada na série Casa do Dragão, relembra ele. Por outras, saíam para viajar e conhecer novos lugares, como iam fazer no último dia 6. “A gente viajava conversando, contando piada.”
O casal estava junto havia quase oito anos. “De domingo para cá, muitas vezes pensei em desistir, mas me apego à Justiça. Seria mais confortante eu ter ido com ela do que ter ficado”, desabafou. “Eu voltava do trabalho e a primeira coisa que queria era dar um beijo nela. É reconfortante se lembrar da vida até as 5h da manhã de domingo. De 6h de domingo para cá, já não há coisa boa de se recordar.”
Vítima foi enterrada com vestido de noiva
Wilker Michel e Francisca Marcela estavam com o casamento civil marcado para o próximo dia 26. O vestido de noiva foi comprado havia algumas semanas. “Ela já tinha provado o vestido, mas só fui ver como ela ficava com ele no sábado (5)”, disse. Na segunda, a ideia dela era fazer uma barra no vestido.
As comemorações seriam simples. Depois de trocar as alianças, o casal planejava tomar café com familiares e logo depois partir para viajar de moto. Já tinham alugado um quarto em Paraty, no litoral do Rio, onde passariam alguns dias no fim do mês.
O corpo da vítima foi velado na noite de segunda no Memorial Ossel, em São Caetano do Sul. Posteriormente, foi encaminhado para Lagoinha, povoado de Sigefredo Pacheco, no Piauí, onde Francisca Marcela nasceu e cresceu.
“Quando o funcionário da funerária me perguntou qual era a roupa que ela mais gostava, não me veio outra na cabeça que não fosse o vestido de noiva. Ela virou uma princesa naquele vestido”, disse Wilker Michel. Ela deixa dois filhos, um no Piauí e outro em São Paulo.
Família fez vaquinha para levar corpo para o Piauí
Pelos altos custos do traslado, familiares de Francisca Marcela fizeram uma vaquinha para enviar o corpo da vítima para o Piauí. Só assim os pais dela, familiares e amigos puderam se despedir. “Sou motoboy. A moto cara que eu tenho é fruto de muitos anos de trabalho. A gente não tem muitos meios financeiros”, disse.
“Me amenizou o fato de ter conseguido me despedir dela aqui também. Graças a Deus consegui fazer um velório aqui, que encheu de gente. Muita gente veio para se despedir. Era uma pessoa querida por todos, sentiam que ela era uma pessoa pura. Eu senti de não ter ido, mas prefiro ficar com lembrança dela aqui, vestida de noiva”, acrescentou.
Enquanto dava entrevista, Wilker Michel acariciava a todo momento um pedaço de tecido rosa amarrado à sua mão direita. “Era a blusinha que ela estava por baixo da jaqueta no dia que ela foi assassinada”, conta. Segundo ele, as equipes de resgate precisaram rasgá-la para fazer os primeiros socorros. “Minha única reação foi ir lá, pegar o pano e amarrar no braço. Ele está no meu braço até hoje. Só tiro para tomar banho.”
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