O processo penal que apura a execução de 111 cidadãos por agentes estatais completa 25 anos. Já passou por muitas fases, decisões e instâncias dentro do sistema de justiça criminal: um inquérito policial militar, um inquérito policial civil, instrução penal, conflitos de competência, habeas corpus, pronúncias, recursos a decisões de pronúncia, semanas de sessões de júri, apelações, anulação de condenação, embargos infringentes, recursos aos tribunais superiores. São 25 anos registrados em um processo que tem mais de 20 mil páginas.
Nos seus últimos lances, a Quarta Câmara do TJSP decidiu, em setembro de 2016, anular a decisão dos jurados que condenou os policiais militares. Em abril deste ano, o desembargador Salles Abreu suspendeu os efeitos dessa anulação até que os recursos especial e extraordinário sejam julgados pelo STJ e pelo STF. Isto é, a realização de novo júri, consequência da anulação,deverá esperar a decisão sobre esses recursos.Não é a primeira vez que o TJSP toma decisões que procrastinam o processo. A reconstrução do caso mostra que em diversas ocasiões o TJSP levou vários anos para atuar e garantir o regular andamento do processo. A confirmação da pronúncia dos réus, por exemplo, levou oito anos para ser julgada. O Tribunal que agora suspende os efeitos da sua própria decisão de anulação é um dos maiores responsáveis pela demora na tramitação deste processo.
Mas esse está longe de ser o único problema que se pode observar na atuação de desembargadores do TJSP que participaram dos julgamentos sobre o Massacre. O julgamento das apelações tornou-se especialmente controverso porque um dos desembargadores desse Tribunal, Ivan Sartori, por meio de uma construção jurídica inaceitável em nossa ordem constitucional, decidiu dar voz às posições políticas que seguem legitimando o Massacre. Ivan Sartori decidiu estender a absolvição de três dos acusados a todos, com fundamento no artigo 580 do CPP, que diz "no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros." Esse artigo refere-se a réus em situações fático-processuais idênticas. No entender dos Tribunais Superiores, hipóteses de extensão da absolvição deveriam acontecer estritamente em caso deausência de materialidade do fato, atipicidade da conduta ou descaracterização do crime e configuração de causa extintiva de punibilidade. Não se presta a casos em que há diversidade de situações entre co-réus, como é a hipótese em questão. As razões levantadas pela promotoria durante as sessões plenárias do júri - e aceitas pelo jurados para sustentar a absolvição desses policiais - referem-se a questões de fato. O conselho de sentença concluiu que os três encontravam-se em situações distintas dos demais do grupo. Este esforço de individualização da participação foi lido por Sartori – contrariando todos os precedentes dessa doutrina -como causa de extensão da absolvição. Claro que este juiz não consegue concluir seu argumento sem discutir o mérito do caso e exceder-se em sua jurisdição. Violou o princípio constitucional da soberania dos veredictos e foi questionado perante o CNJ em reclamação disciplinar apresentada por organizações da sociedade civil.
Esta não seria a primeira vez no caso Carandiru que desembargadores desse Tribunal usurpam a competência constitucional do conselho de sentença e apressam-se em produzir absolvições. Foi assim que, em fevereiro de 2006, o Órgão Especial do mesmo TJSP, competente para tramitar processos em foro especial, decidiu absolver o Coronel Ubiratan, acusado de ter liderado a ação dos policiais, revertendo uma decisão condenatória dos jurados.
A posição de Sartori não foi seguida pelos demais desembargadores que participaram do julgamento. A maioria da Câmara decidiu, contudo, que os jurados haviam julgado “contrariamente às provas dos autos” e que portanto o caso deveria ser submetido a novo julgamento.A falta de individualização de conduta foi, segundo o acórdão,a razão da anulação. As dificuldades para individualizar as condutas dos policiais envolvidos no caso estão diretamente ligadas às ações dos próprios agentes policiais que alteraram a cena do crime e ocultaram projéteis e armas. Parece que estamos aqui diante de um caso em que o argumento da defesa – que acabou acolhido pelo Tribunal – tem origem na própria torpeza dos agentes do Estado que destruíram as provas e a possibilidade de produzi-las. Que o caso seja agora anulado com base na própria incapacidade do Estado de apurar os seus crimes revela a inabilidade do sistema jurídico penal de lidar com graves violações de direitos humanos.
Mas para além da crítica – que nos parece necessária – ao modo como juízes de um Tribunal usam seu poder e sua retórica jurídica para procrastinar o julgamento de um dos casos mais relevantes da nossa transição democrática, há outra questão que nos parece ainda mais grave. Nunca encaramos de frente o apoio que o Massacre teve e tem de muitos setores da sociedade (inclusive dentro da magistratura). É sintomático que a única resposta que as instituições brasileiras tenham dado ao Massacre do Carandiru tenha sido um processo penal que dura 25 anos e está preso em engrenagens surreais e atrasos deliberados – protegidos pelo sigilo dos autos. Um processo que, caso seja concluído até 2030, quando poderá ocorrer novaprescrição, só conseguirá produzir a resposta binária de absolver ou condenar 79 homens pelo que aconteceu. A responsabilidade de nenhuma autoridade foi apurada. Mais de metade das famílias nunca recebeu qualquer tipo de indenização e as que ganharam as ações levaram mais de uma década para ter os precatórios liberados. A Casa de Detenção foi demolida e transformada em área de lazer sem qualquer compromisso com a memória de um episódio desta magnitude. O Museu Penitenciário Paulista, reinaugurado em 2014, construído para ser um espaço “capaz de propiciar a reflexão sobre a história penitenciária”, não menciona o Massacre do Carandiru em seu portal virtual e, em suas instalações, limita-se a denominar os fatos ocorridos na Casa de Detenção de “motim de presos”.
A polícia continua violenta, agride e mata diariamente jovens pretos e pobres da periferia. Nossas taxas de encarceramento crescem vertiginosamente, sob a complacência de todos os que sabem que o sistema prisional é o inferno e ainda assim querem mais punição. A crença no “bandido bom é bandido morto” atravessou intacta os 25 anos que hoje nos separam daquele 02 de outubro. Apenas a lógica da perpetuação dos massacres é capaz de explicar que,a essa altura, a sociedade brasileira espera que um sistema penal – que carrega em seu próprio funcionamento a violência e a aniquilação do preso – a redima do Massacre do Carandiru.
*São professoras da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisadoras do processo do Massacre do Carandiru
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