Aos 50 anos, Minhocão vive contrastes em meio à desigualdade social e revalorização do entorno

Viaduto no centro de São Paulo é alvo de críticas desde a inauguração; elevado tem projeto para virar parque em meio à valorização imobiliária

PUBLICIDADE

Foto do author Priscila Mengue

O Elevado Presidente João Goulart parece fatiar a região central de São Paulo em duas realidades distintas. Uma, suspensa, é a dos corredores amadores, do jogo de futebol improvisado por crianças no meio da rua, dos grupos de amigos sentados no meio fio e das selfies em frente a murais gigantes. A outra, na altura do solo, é dos comerciantes e moradores em situação de rua que vivem debaixo de uma sombra constante e de fuligem. 

Essa dimensão ganha ainda mais camadas ao se analisar o entorno, que passa por uma fase de revalorização imobiliária em meio à presença de uma parcela dos moradores que testemunharam décadas de transformação. O novo e o velho contrastam na paisagem do Minhocão, que completa 50 anos de inauguração neste domingo, 24.

Minhocão completa 50 anos de inauguração Foto: Tiago Queiroz/Estadão

PUBLICIDADE

O viaduto foi entregue como um presente de aniversário a São Paulo, embora já fosse alvo de críticas na época. Cinco anos depois, sofreu a primeira restrição ao tráfego (na madrugada), com o objetivo de reduzir o incômodo dos moradores próximos. Depois de 1989, com o fechamento aos domingos, passou a ter uma ocupação urbana espontânea, virando quase um calçadão.

No entorno, a construção trouxe desvalorização aos imóveis, assim como o aumento na poluição sonora e do ar, especialmente nos pavimentos mais baixos. Esse movimento, contudo, tem sofrido uma inversão nos últimos anos. Desde 2018, por exemplo, foram iniciadas ou entregues obras de ao menos sete edifícios com as janelas voltadas para o elevado, além de outros tantos nas quadras próximas.

Publicidade

Vista mudou para Elisa D'Alessio, de 80 anos, após inauguração do elevado Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O cenário é um tanto diferente do que viu a aposentada Elisa D’Alessio, de 80 anos, quando se mudou para a região, em 1964, onde reside até hoje. Nos primeiros anos, da janela, enxergava o trânsito de aviões no Campo de Marte, o circo do palhaço Piolin, na Marginal do Tietê, e diversos casarões. A vista mudou com a inauguração do elevado e a construção de outros tantos edifícios no centro expandido.

"Lembro com saudade do bonde que passava bem em frente ao prédio. Eu o pegava todos os dias para ir até o meu trabalho”, recorda. O transporte pelos trilhos deu lugar ao elevado, mas isso não chegou a incomodá-la, mesmo estando na janela. "Encarei com naturalidade. É o progresso. Hoje incomoda, amanhã vai melhorar.”

Morador das proximidades há 38 dos seus 58 anos, o escritor e professor de ioga Gil Veloso, lembra que não estranhou a presença do grande viaduto quando se mudou para São Paulo. “Naquela época, falava-se bem menos. Ele sempre foi alguém com quem me deparei na cidade, como se depara com a desigualdade social. Por ser do interior, tinha uma ideia que São Paulo era isso, não tinha nem árvore”, recorda. 

Gil é um dos realizadores de uma caminhada artística anual chamada Grande Minhocão: Veredas, que mistura referências literárias, musicais, arquitetônicas e de outras áreas. Além disso, inspirou-se no espaço para escrever o livrode poesia juvenil Um Viaduto Chamado Minhocão, com ilustrações de Paulo Von Poser. "Para muitos, sou estorvo/Para outros, solução”, resume em um dos poemas.

Publicidade

Para Gil, o espaço parece “as entranhas da cidade que ficaram expostas”, mostrando contradições e desigualdades. “Lá já vi apresentações musicais, de teatro, participei de mercado de pulgas, inclusive como vendedor. Já fui até assaltado, roubaram a minha bicicleta 20 anos atrás. Convido pessoas, levo lá, algumas pela primeira vez”, descreve. “Simpatizo com o Minhocão e não simpatizo ao mesmo tempo. Preferia que não existisse, mas aí é outra questão.”

Minhocão é alvo de críticas desde antes da inauguração, em 1971 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O produtor cultural e diretor de teatro Iarlei Rangel, de 44 anos, também percebeu grandes mudanças ao longo dos 15 anos em que vive em um apartamento defronte ao elevado. “Vim morar aqui porque era mais barato e perto do centro. Os preços aumentaram muito nos últimos 8 anos. Por sorte, a gente conseguiu financiar a compra. Senão, provavelmente teria sido expulso dessa região, como outros foram.”

Nos primeiros anos em São Paulo, Rangel mais observava o elevado. A relação se estreitou quando participou da fundação do grupo teatral Esparrama, que passou a ensaiar em seu apartamento. “Os palhaços iam pegar ar no intervalo e, só de aparecer na janela, já reuniam uma galera curiosa”, recorda.

Por isso, decidiu aprofundar-se em reflexões sobre o Minhocão, trabalho que deu origem a três peças teatrais infanto-juvenis, apresentadas diretamente do janelão para um público médio de 300 pessoas, todas dispostas no asfalto. “Quando a gente abriu a janela, foi uma loucura. A gente fala que foi como se a cidade invadisse a nossa casa de forma bastante presente.”

Publicidade

Hoje, com a pandemia, as apresentações estão suspensas e ele frequenta o espaço apenas para se exercitar quando possível. Quando as restrições da quarentena não permitem o fluxo de pessoas, diz que a “inutilidade” da estrutura fica ainda mais evidente. “Se não tem pessoas usando, é só um monstro de concreto que pode ser substituído por diversas coisas.”

Elevado expõe desigualdades sociais de São Paulo

Samara Felix, de 30 anos, mora embaixo do viaduto Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Como em outras tantas ocasiões, a parte superior do elevado ficou alagada por causa da chuva na última semana. Essa mesma água que dificultava o tráfego de veículos era recolhida por Edmilson Maximiano Bueno, de 24 anos, da "cachoeira" que escoava próxima de uma das pilastras. Com um balde e sabão em pó, ele lavava os próprios tênis e os da companheira, Renata Soares, de 38 anos.

Eles dividem uma barraca abaixo da marquise do viaduto, vizinhos de outro casal também em situação de rua, Edvaldo dos Santos, de 40 anos, e Samara Paula Oliveira Felix, de 30 anos, que é transgênero. Juntos, cuidam das cadelas Amora e Jade e do cão de guarda Spike. 

Publicidade

Para limpar os demais pertences, eles utilizam água disponibilizada por frentistas de um posto de gasolina. Já a higiene pessoal é feita no banheiro de uma adega a um quarteirão de distância e em uma estrutura para banhos disponibilizada pela prefeitura.

Sem trabalho fixo, eles vivem de pedir nos faróis, catar latinha e recicláveis - como outras centenas de pessoas na região. Doações de alimentos são, contudo, recebidas com desconfiança. "Um dia a Samara ganhou um lanche com um caco de vidro desse tamanho. Já ganhamos marmita com chumbinho, água com gosto de remédio, devia ser sonífero. Não é preconceito, é muita maldade", recorda Edvaldo. 

Moradores preparam comida sob marquise Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Quando falava com a reportagem, ele e Edmilson preparavam um macarrão com molho de tomate debaixo do elevado. Oito tijolos serviam de suporte para uma grelha, sobre a qual colocaram a panela de pressão. Para fazer fogo, desfizeram uma caixa de feira, álcool e - o segredo para fazer fogo tão rápido - espumas guardadas em uma fronha. 

"Vai trabalhar, vagabundo", gritou para o grupo um motorista que passava em direção à zona leste. "Isso aí é toda hora, a gente nem liga mais", comenta Edvaldo. A estratégia para continuar com as barracas é sempre ter alguém dentro ou por perto. "Se não tem ninguém, aí é abandono, jogam tudo no caminhão e levam embora", explica. Daí a importância de estabelecer pequenos núcleos, vistos ao longo de toda a extensão do Minhocão. 

Publicidade

Edmilson Bueno, de 24 anos, mora em uma barraca debaixo do Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Minhocão vive renovação, como novos edifícios e negócios

Enquanto a região tem uma população em situação de vulnerabilidade nas ruas e em cortiços, uma outra leva de moradores tem chegado, especialmente pela proximidade de serviços, a presença de comércios para um público jovem e de classe média e a revalorização do centro expandido.

Isso fica evidente nos lançamentos imobiliários. Grande parte faz referências no nome às localizações mais valorizadas do entorno (o bairro de Higienópolis e o distrito de Santa Cecília), mesmo estão em outros locais, e investe em propostas afinadas com esse público, como a previsão de pintar um mural gigante na lateral do edifício, a presença de bicicletários e a oferta de moradia compartilhada (coliving).

Há diferenças entre os imóveis, em valores e propostas arquitetônicas, mas a ideia de atender um público mais jovem é predominante. Diferentemente de lançamentos vizinhos, a incorporadora Magik JC, por exemplo, está focada em unidades do Minha Casa Minha Vida na região, voltadas a compradores com média de renda familiar de 3,5 salários mínimos. 

Publicidade

Dos 11 prédios que a empresa lançou no centro desde 2016, dois ficam voltados para o Minhocão, assinados por escritórios de arquitetura conhecidos, como o de Isay Weinfeld. As imagens de divulgação desses imóveis não escondem e até destacam a vizinhança do viaduto. 

“Tenho um orgulho enorme de estar fazendo prédios aqui. Esconder o que região tem seria um desrespeito cliente. Se faço um anúncio em que tiro o Minhocão, estou te enganando: ele faz parte da paisagem”, aponta o CEO, André Czitrom.

Ele cita a presença de edifícios simbólicos da cidade ao longo e nas proximidades do elevado, parte deles tombado como patrimônio histórico, e a necessidade de dialogar com esse entorno no projeto, com a manutenção de comércio no térreo e ausência de muros, no que chama de “revitalização com responsabilidade”. 

Patrick se mudou há menos de seis anos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Dentre esses moradores mais recentes da região está o comediante Patrick Maia, de 35 anos, que se mudou há pouco menos de seis anos. A localização do elevado a menos de uma quadra foi um dos fatores que o fez duvidar da decisão, mas acabou se convencendo. Depois de um tempo, subiu no espaço pela primeira vez e, hoje, frequenta cerca de três vezes por semana para andar de bicicleta e passear com o cachorro.

Publicidade

Foi em um desses passeios que reparou em um predinho com as janelas de vidro a poucos metros da beirada do viaduto. “Tinha uma salinha toda de vidro, que dava para ver do elevado e que dá para ver o elevado de dentro. Não dá para ser mais São Paulo que isso”, relata ele, que alugou o espaço em 2018, onde inaugurou a casa de shows de stand up comedy Clube do Minhoca.

“Por ser perto do Minhocão, foi mais barato. Se fosse a duas quadras para cima, iria pagar pelo menos o dobro. E acho que não seria pitoresco igual a esse”, relata. “Isso me interessou muito: abrir um clube no lugar onde as pessoas mais desprezam em São Paulo. Acho que, em parte, o clube ajudou a pegar de volta partes da cidade que estão esquecidas. Hoje tenho motivos para morar no bairro que não tinha 5 anos atrás.”

Ele conta que outros espaços culturais e gastronômicos abriram na mesma quadra desde então, atraindo movimento à noite. “Meus amigos, meus colegas, tenho certeza que nunca frequentariam essa região se não fosse o Clube do Minhoca. Mas, hoje em dia, tenho alguns que perguntam se tem apartamentos alugando no meu prédio.”

Focado em stand up comedy, Clube do Minhoca fica em frente ao elevado Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Quando a apresentação é de um humorista mais conhecido, por vezes os pedestres que passam pelo elevado dão uma espiada pela janela. “Se alguém reconhece, já para e fica olhando pra dentro, as pessoas vão se aglomerando no parapeito porque está Fábio Porchat no palco”, exemplifica.

Publicidade

Além da presença no nome espaço, o Minhocão também é referência constante nas apresentações. “Tem piadas inevitáveis, e a gente faz muitas. Quando estou fazendo shows ali, falo que as pessoas estão caminhando, que ali todo mundo está correndo por vários motivos, alguns para manter a boa forma, outros para recuperar o celular. O importante é estar em movimento.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.