Por que microapartamentos em bairros de classe média de SP estão no centro de investigação do MP

Promotoria quer suspensão temporária de política municipal de incentivo, o que pode impactar no mercado de terrenos e em novos empreendimentos. Prefeitura diz que buscará reparação na Justiça. Construtoras dizem seguir legislação

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

As primeiras multas e sanções confirmadas para cinco empreendimentos em bairros nobres e de classe média paulistanos, como Pinheiros, são apenas a “ponta do iceberg” de algumas centenas de prédios que receberam incentivos para a moradia de baixa renda e estão sob investigação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) há mais de dois anos. As penalidades iniciais foram divulgadas pela Prefeitura dias após ser denunciada à Justiça pela Promotoria, por suspeita de “negligência” na fiscalização da destinação de apartamentos produzidos com incentivos construtivos e fiscais de Habitação de Interesse Social (HIS) — para famílias com renda mensal de até seis salários mínimos.

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Ao menos outros três empreendimentos foram avisados nos últimos dias de que receberão punições da gestão Ricardo Nunes (MDB), mas ainda há prazo para recorrer. A Prefeitura tem dito que instaurou 200 processos, referentes a mais de 24,6 mil unidades residenciais que receberam o benefício (criado no Plano Diretor de 2014), e que buscará reparação também na Justiça por danos morais. Ainda está em apuração, contudo, quais investigados de fato descumpriram regras previstas na lei. As construtoras citadas negam irregularidades.

Os casos envolvem especialmente a venda de unidades para compradores com renda superior à prevista em lei. As duas multas com valores já divulgados, que somam R$ 31 milhões, são relativas a benefícios urbanísticos concedidos pelo Município, enquanto a penalidade referente ao ISS ainda será calculada.

A Secretaria Municipal de Habitação, diz a gestão Nunes, prioriza “a fiscalização, com a aplicação de sanções e continuidade das apurações sobre possíveis desvios”.

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Empreendimento em Pinheiros foi multado pela Prefeitura por destinação de HIS; construtora nega irregularidades Foto: Taba Benedicto/ Estadão

As construtoras sofreram sanções por edifícios erguidos em Pinheiros, na Lapa e na Vila Romana, zona oeste, além de Alto do Ipiranga, na sul, e São Lucas, na leste. Os empreendimentos que já receberam penalidades ou aviso de sanção envolvem algumas das principais incorporadoras do mercado imobiliário: Benx, Tecnisa, MF7, You,Inc e Consthruir. Procuradas, as empresas defenderam ter respeitado a legislação (leia mais abaixo).

Na Justiça, o MP-SP pediu a suspensão temporária da política de incentivos urbanísticos e fiscais para construir apartamentos voltados à população de baixa renda.

A ação civil pública é vista com preocupação por parte do setor imobiliário. Avalia-se que, se a Justiça der a liminar, há potencial de impacto na dinâmica de aquisição de terrenos, na aprovação de novos empreendimentos para HIS e até na obtenção de “habite-se” para obras em conclusão.

Além disso, escritórios de advocacia especializados em mercado imobiliário têm defendido que há margem para judicialização por parte das autuadas, com possibilidade de cancelamento ou redução da multa.

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Os casos envolvem basicamente microapartamentos e pequenas unidades classificadas como HIS-2, categoria voltada a famílias com renda de três a seis salários mínimos. Boa parte desses apartamentos HIS de São Paulo tem até 30 m².

O “boom” recente de microapartamentos na cidade, contudo, não se restringe a moradias desse tipo. Envolve unidades variadas e destinadas a diferentes perfis de renda, inclusive registradas como não residenciais, voltadas a “serviços de hospedagem”.

No dia 6, o prefeito se reuniu com as principais entidades do mercado imobiliário para tratar do tema, como o Secovi-SP, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado (Sinduscon-SP).

Em agenda pública sobre outro tema, no dia 1º, Nunes afirmou que novas multas chegarão em breve, na ordem de R$ 100 milhões. Ele declarou que alcançarão valores ainda maiores, com novas penalidades “fortíssimas”. “Imagina quando chegar nos 200 (processos de investigação em aberto)?”, disse.

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O prefeito defendeu ainda que a política pública de incentivo à produção de HIS funciona, mas que “alguns cometem erros, crimes”. “Vamos agir de forma intensa. Vai ficar como exemplo para ninguém mais fazer”, acrescentou.

Na investigação, o MP-SP tem apurado empreendimentos em diversos bairros, incluindo áreas nobres como Vila Olímpia, Itaim Bibi e Moema. Defendeu que há “falta de controle” na disponibilização do benefício, com possível “enriquecimento ilícito” de construtoras.

Não há um número total de quantos imóveis receberam o incentivo para HIS e HMP na última década. Levantamento parcial da Prefeitura indica que, de agosto de 2019 a outubro de 2024, foram mais de 446,5 mil unidades beneficiadas. O montante total abrange 143,3 mil construídas e 303,1 mil licenciadas ou em fase de construção, mas não se sabe o quanto do total envolve possível desrespeito à finalidade prevista na lei.

Em comunicado recente, a gestão Nunes disse que as empresas “se beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam na modelagem”.

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Também destacou que a revisão do Plano Diretor, em 2023, reforçou regras para garantir que essas habitações sejam destinadas a famílias de baixa renda, o que inclui a exigência de comprovação da faixa de renda e averbação da tipologia do imóvel por 10 anos.

À Promotoria, alguns compradores relataram que não foram informados de que tinham adquirido uma HIS. Além disso, há indícios de pessoas físicas e jurídicas que adquiriram os imóveis cientes de ser uma habitação de interesse social e, mesmo assim, anunciaram a revenda ou aluguel por valores incompatíveis para essa faixa de renda.

Não se sabe também o total de recursos públicos do qual o poder público perdeu para o incentivo a esse tipo de construção. A Prefeitura disse nesta quarta que faz os cálculos.

“A confessada falta de controle da política pública está possibilitando, por um lado, que construtoras que descumprem a legislação aplicável enriqueçam ilicitamente e, por outro, que as famílias vulneráveis (público-alvo) sejam preteridas no acesso à moradia”, apontou o MP.

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Outro empreendimento também em Pinheiros teve sanção anunciada; construtoras têm negado irregularidades Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Por ora, os dois empreendimentos que tiveram o custo da multa divulgado pela Prefeitura são o B.Side Faria Lima, na Avenida Eusébio Matoso, em frente ao Shopping Eldorado, e o Viva Benx Lapa, na Avenida José Maria de Faria, nas proximidades da Marginal do Tietê. A penalidade determinada pelo Município aponta “sanções de cancelamento da isenção ou redução do fator de interesse social, bem como a sua cobrança em dobro a título de multa”.

Em nota, a M.A.R. Hamburgo - empresa da Benx alvo da notificação - afirma que os compradores das unidades estavam “ligeiramente acima do limite permitido por lei” (R$ 112 e R$ 1,5 mil) e defende a legalidade da “aquisição de imóveis por investidores, para posterior locação social”. Também diz seguir “rigorosamente” a lei.

Já o MF7 Eusébio - empreendimento da MF7 com a You,Inc - diz que “respeita a legislação em vigor à época do lançamento” e afirma que as unidades foram vendidas para pessoas enquadradas no perfil de renda estipulado. Ainda respondeu que adotará “todas as medidas cabíveis para demonstrar o efetivo cumprimento das obrigações”.

As demais sanções (cujos valores ainda não foram divulgados) envolvem o Houx Pinheiros (da Tecnisa) e o Viva Benx Pinheiros, ambos na zona oeste, além do Famile Gentil 300 (da Consthruir), no Alto do Ipiranga, zona sul.

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Os responsáveis pelo Viva Benx Pinheiros afirmam ter “compromisso com o cumprimento da lei e com as necessidades habitacionais da população”. Dizem ainda seguir “rigorosamente” a lei “no desenvolvimento das unidades habitacionais de interesse social, atendendo aos critérios e normas estabelecidas pela Prefeitura, permitindo a venda para pessoas enquadradas nos critérios do HIS / HMP, bem como a venda para locação social”.

Em nota, a Tecnisa afirma que as “unidades foram destinadas regularmente” e acrescentou que apresentará defesa no processo no prazo legal e adotará “medidas legais cabíveis”. O Estadão não conseguiu contato com a Consthruir.

Como tem ocorrido a apuração de casos suspeitos?

No Município, os casos multados começaram a ser apurados há cerca de um ano. A fiscalização tem a participação dos cartórios, que passaram recentemente a notificar a Prefeitura e o MP sobre suspeitas. Essa identificação envolve especialmente a renda declarada dos compradores.

Os procedimentos de investigação no âmbito municipal foram estabelecidos pela Prefeitura em um decreto e uma portaria no ano passado, publicados após a revisão do Plano Diretor, de 2023. Antes da publicação da sanção, há a apuração preliminar, a notificação do empreendimento e a elaboração de um relatório final conclusivo.

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Nos processos, a Prefeitura tem alegado que as incorporadoras e construtoras autuadas tiveram “múltiplas oportunidades” de apresentar documentação comprobatória. “A empresa recebeu diversas vantagens (isenção tributária de ISS e isenção urbanística referente à outorga onerosa) para, em contrapartida, alienar as unidades para famílias de baixa renda. Sem que o público-alvo tenha sido atendido, não se justifica a subsistência das benesses legais, como corolário do princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, diz a justificativa usada em diversos casos.

Desde o Plano Diretor de 2014, empreendimentos voltados a esse tipo de apartamentos têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de milhões de reais em bairros valorizados). Há ainda diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, construções verticais.

“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.

O total de R$ 31 milhões em punições imposto pela Secretaria de Habitação se refere à estimativa de outorga onerosa que deveria ter sido paga (visto que a destinação não foi como prevista no benefício para HIS) somada a uma multa com o dobro do valor do que seria devido. Ambas foram notificadas no ano passado, com o prazo de apresentação de defesa. Os dois empreendimentos estão concluídos e já em uso.

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‘Fake HIS’ e ‘padrão reiterado de ilegalidades’

Na ação judicial, é mencionada expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.

No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. “Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP na ação.

No processo, o MP compara que o Plano Diretor de 2014 fez grande alteração na política de produção privada de HIS na cidade, ante a lei anterior, de 2002. Se, antes, essa possibilidade envolvia convênios e consórcios junto ao poder público, passou a não ter exigência de regulação de oferta e demanda pelo Município e ainda ampliou a gama de incentivos.

“O desenho da política municipal destinou ao mercado a tarefa de controlar se indivíduos e famílias que adquirem as unidades de HIS estão ou não inseridos adequadamente nos critérios de renda estipulados pela legislação”, argumenta a Promotoria. “Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social.”

O que o MP defende?

Na ação, o Ministério Público aponta que a política de incentivo precisa ser suspensa temporariamente até o desenvolvimento de um “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários” e a definição de controle de preços de venda de unidades e locações. Fala-se até na possibilidade de que seja descontinuada.

A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

“Um universo indeterminado de famílias pobres foram impossibilitadas de ter acesso à moradia por conta dos valores exorbitantes estipulados, unilateralmente, pelo mercado imobiliário para aqueles imóveis”, assinalaram.

Em resumo, o MP aponta os seguintes problemas em relação a essa política pública:

  • inexistência de fiscalização se as unidades de HIS ou HMP estão sendo alienadas ou locadas para as famílias que se enquadram nas respectivas faixas de renda;
  • falta de controle público dos preços das unidades habitacionais produzidas pelo setor privado a partir dos incentivos públicos concedidos;
  • ausência de controle sobre o volume de incentivos públicos concedidos;
  • não punição de infratores (empreendedores e adquirentes dos apartamentos);
  • inexistência de indicadores de desempenho;
  • desconhecimento sobre os efeitos da política municipal.