Após expedição pelo País, artista cria mural gigante com resíduos de queimadas

Mundano utilizou cinzas e carvão derivados de incêndios na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e na Mata Atlântica; obra denuncia crimes ambientais e homenageia brigadistas

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Foto do author Priscila Mengue

Foram alguns milhares de quilômetros de expedição na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e na Mata Atlântica ao longo de um mês. Do combate ao fogo por brigadistas voluntários a conversas com cientistas que monitoram os incêndios diariamente, o artista paulistano Mundano, de 36 anos, testemunhou a devastação de biomas brasileiros de perto.

Em equipe, ele colheu cinzas e coletou restos de árvores transformadas em carvão pelo fogo. O resultado foram 220 quilos de resíduos de incêndio, em parte transformados em mais de 50 tonalidades de tinta cinza, utilizada na produção do mural gigante “O Brigadista da Floresta”.

Artista e ativista Mundano usa cinzas das queimadas em tinta para fazer mural gigante Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Com 46 metros de altura e mil metros quadrados, a obra ocupa a fachada lateral de um edifício na Rua Capitão-Mor Jerônimo Leitão, nas proximidades da Avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo. A inauguração oficial será nesta terça-feira, 19, pela tarde, com a presença da equipe responsável e o brigadista retratado na peça.

Trata-se de uma releitura de “O Lavrador de Café”, de Cândido Portinari, voltada a denunciar a devastação ambiental de biomas brasileiros. Também é uma homenagem aos “heróis e heroínas invisíveis” que combatem os incêndios criminosos.

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Para a obra, o artista fez imagens do brigadista voluntário Vinícius Curva de Vento, de 36 anos, que conheceu durante a expedição pelo País. “Sempre me interessei e pesquisei muito sobre água, seca… Mas não tinha ideia do tamanho do trabalho dos brigadistas, de como é importante”, comenta Mundano.

No mural, o brigadista é retratado com um abafador de fogo, ocupando o espaço no qual a pintura de Portinari traz um lavrador com uma enxada. Já o tronco de árvore cortado da obra que serviu de inspiração ganhou o formato do mapa do Brasil.

Além disso, a releitura substituiu a lavoura de café pela vegetação queimada, enquanto o trem que transportava a produção cafeeira virou caminhões com madeira. Ela traz, ainda, o esqueleto de um jacaré, enquanto as nuvens deram lugar à fumaça dos incêndios.

“Releituras são uma forma de atualizar. É a mesma denúncia que Portinari já fazia nas suas telas, da invisibilidade do trabalhador, o lavrador de café e, agora, o brigadista. O cafezal já era o agro desmatando a Mata Atlântica”, compara. 

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Esta é a terceira vez que o artista utiliza o que chama de “resíduos de crimes ambientais” na produção de obras. Com a lama que coletou em Brumadinho após o rompimento da barragem da Vale, criou outro mural gigante inspirado em “Operários”, de Tarsila do Amaral, feito em uma empena cega nas imediações do Mercadão em 2020. 

Além disso, ele utilizou amostras das manchas das toneladas de óleo que apareceram na costa brasileira em uma releitura de “Grande Onda de Kanagawa”, do japonês Katsushika Hokusai, no mesmo ano. “Também é uma forma de protestar”, diz Mundano, que se descreve como “artivista” (termo que une “artista” e “ativista”).

A jornada

Chamada Cinzas da Floresta, a expedição foi realizada entre junho e julho deste ano, no início da temporada do fogo. Ela também virará um documentário, em produção. 

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Durante a jornada, as equipes utilizaram monitoramentos, como o do Inpe, para identificar as áreas atingidas pelos incêndios. “A expedição me deu uma dimensão de Brasil, vendo como o agronegócio vem destruindo tudo, é meio assustador", desabafa o artista.

Embora a grande maioria do material seja de cinzas deste ano, há uma parte referente a incêndios de outros anos, sendo a mais antiga de 2010. “Tudo o que queima vira cinza, mas cada bioma tinha uma característica na coleta. Em área de pastagem, tem mais gramíneas. No Pantanal, a gente encontrou ossadas, há pequenas diferenças de tonalidade”, conta Mundano. 

Segundo ele, nem toda a matéria-prima foi utilizada no mural. “A gente está estudando outras formas de engajar mais artistas usando as cinzas”, declara.

A obra

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Antes da execução, Mundano fez uma visita privada ao "Lavrador de Café", no Masp. Ele avaliou os detalhes do trabalho de Portinari, além de falar com entendedores do tema.

“Tinha a necessidade de ver ao vivo, sentir, ver os detalhes. Me senti mais apto para esta grande responsabilidade”, relata. No trabalho de aprofundamento, também visitou o Museu Casa de Portinari, em Brodowski, interior paulista. A ideia foi se “conectar com as raízes” do artista que o inspirou.

Entre expedição, produção e execução, o trabalho mobilizou uma equipe de mais de 20 pessoas, em diferentes funções. A pintura da empena levou cerca de duas semanas, com conclusão no domingo, 17.

Em meio à chuva e pouco sol, um dos desafios foi alcançar os tons desejados, o que exigia por vezes de três a quatro camadas de pinturas no mesmo ponto. Embora satisfeito com o resultado, Mundano pondera que seriam necessários pelo menos uns três meses de trabalho para se aproximar do contraste de luzes e sombras da obra de Portinari.

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'A gente não tem coragem de ficar vendo queimar. Então, a gente vai', conta brigadista que inspirou mural

Retratado no mural feito por Mundano em São Paulo, Vinícius Curva de Vento, de 36 anos, se mudou para a Vila de São Jorge, em Alto Paraíso de Goiás, em 2014. Ele foi atraído pela natureza da Chapada dos Veadeiros, a mesma que viu queimar pela primeira vez meses depois e em todos os anos seguintes, o que o motivou a ingressar na Brigada Voluntária de São Jorge há seis anos.

Ao Estadão, ele comenta que a força da comunidade local é uma das principais responsáveis por atenuar os efeitos do fogo. “Na hora do vamos ver, toda a vila se mobiliza. Tem gente que enche o caminhão de água e leva para a gente. O movimento civil é bonito, mas por um motivo triste.”

Artista quis chamar atenção para as queimadas em diversos biomas do Brasil Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Vinícius descreve os trabalhos no combate ao fogo como extenuante. O calor é intenso, a sensação é de estar sendo cozido. Mesmo com equipamentos de proteção, comumente encontra feridas no corpo nos dias seguintes. 

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Para o brigadista, a situação deste ano (que teve mais um recorde de queimadas no País) foi ainda pior, o que acredita que vá piorar com a intensificação das mudanças climáticas. “O brigadista (onde atua) praticamente não conseguiu eliminar o fogo, só conseguiu proteger as moradias.”

Ele lamenta que as ações de prevenção dos órgãos responsáveis são insuficientes para evitar os incêndios. “A gente não tem coragem de ficar vendo queimar. Então, a gente vai. É perigoso, insalubre pra caramba, com muito fumaça, dá ferida, intoxica a gente.”

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