Um áudio de três minutos é a primeira prova a surgir de que Antonio Vinícius Lopes Gritzbach, delator do Primeiro Comando da Capital (PCC) executado no Aeroporto de Guarulhos na sexta-feira, 8, não havia entregado tudo o que prometera aos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). A gravação traz a conversa entre o delator e dois homens identificados como agentes do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil.
O Estadão procurou os policiais citados, mas não obteve resposta. A Corregedoria da Polícia Civil afastou seis policiais citados por Gritzbach na delação nesta quarta-feira, 13, mas não revelou os nomes. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública destacou ter “apuração preliminar para apurar as denúncias contra agentes”. Segundo a pasta, eles foram afastados do trabalho operacional enquanto é feita a investigação.
A existência do áudio foi revelada por Gritzbach aos promotores no anexo seis de sua proposta de delação premiada enviada ao Gaeco. A gravação, porém, ainda não havia sido repassada aos promotores. O anexo seis se refere a denúncias de corrupção feitas por Gritzbach sobre agentes da Polícia Civil de São Paulo.
O Estadão teve acesso à gravação de um telefonema feito pelo delator enquanto era investigado pelo assassinato do traficante Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta, e seu segurança Antonio Corona Neto, o Sem Sangue.
O crime aconteceu em 27 de dezembro de 2021, no Tatuapé, na zona leste. Segundo a polícia, Gritzbach teria sumido com R$100 milhões que Cara Preta aplicara em criptomoedas e, após ser cobrado pelo traficante, decidiu se livrar dele. Gritzbach admitia ter lavado dinheiro vendendo imóveis para traficantes do PCC, mas sempre negou a acusação do duplo assassinato.
telefone 2
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No telefonema, Gritzbach demonstra intimidade com o investigador, identificado como Edu. Ele seria Eduardo Monteiro, que na época pertencia ao DHPP, que investigava o duplo assassinato. Seu nome consta da proposta de delação do empresário.
Em certo momento da conversa, um delegado também participa do diálogo. Seria outro dos policiais citados por Gritzbach em sua proposta de delação: Fábio Baena, que na época também era do DHPP. Tanto Baena quanto Eduardo participavam da investigação, que concluiu que Gritzbach era o mandante da morte de Cara Preta e Sem Sangue. “Contra vocês eu não tenho nada. Como você falou outro dia, vocês só me ajudaram”, afirma o empresário na conversa com os policiais.
No meio do áudio, uma pessoa identificada como Baena promete ajudar o delator do PCC: “Na audiência, eu já falei, se precisar de mim, a gente vai conversar com o advogado. Eu te ajudo lá, fica tranquilo.”
Para a defesa do acusado, o áudio era um indício de que os policiais sabiam que estavam acusando Gritzbach injustamente, a fim de proteger os verdadeiros culpados pela execução.
Mesmo Grtizbach já sendo então acusado de duplo assassinato, o policial segue no áudio prometendo ajudá-lo: “Vai ter audiência. Vai ter lá na frente. Vai ter, vai ter, vai ter, tá? Aí a gente vai bater o papo. Fica tranquilo, tá bom?”.
Gritzbach diz em seguida que um diretor de um departamento da polícia estava chateado com a equipe do delegado. E afirma que uma pessoa identificada como Fabinho ou Flavinho “tomou o sítio, vendeu um sítio”. Não fica claro do que os dois estavam tratando.
Em entrevista ao jornalista Roberto Cabrini, da TV Record, Gritzbach exibiu um trecho desse áudio e questionou a razão de o delegado Fabio Baena e investigadores do DHPP quererem ajudá-lo. O Estadão procurou Baena nesta quarta-feira, 13 de novembro, e deixou recado em seu telefone. Também procurou o investigador Eduardo Monteiro, mas não obteve resposta. À Record, Baena afirmou que não mudou de ideia sobre a autoria e o mando dos assassinatos de Cara Preta e Sem Sangue.
Gravação revela potencial de prejuízo às investigações
O Estadão consultou três pessoas que tinham conhecimento das gravações feitas por Gritzbach e da delação assinada pelo empresário com o Gaeco. Todas confirmaram a veracidade da gravação. Duas delas afirmaram que o áudio ainda não havia sido entregue pelo empresário aos promotores do Gaeco, indicando que Gritzbach, de fato, tinha provas e fatos que não haviam sido relatados nos seis depoimentos dados para os promotores e nos três prestados à Corregedoria da Polícia Civil. O fato começa a sugerir o tamanho do prejuízo que a morte de delator pode trazer às investigações.
Exemplo disso é que Gritzbach poderia identificar em depoimento formal os participantes da conversa à qual o Estadão teve acesso. O que existe é apenas o relato da existência dessa conversa na proposta de delação que fora encaminhada pela defesa do empresário aos promotores do Gaeco em 23 de novembro de 2023, documento ao qual o Estadão também teve acesso. Com base nele, a força-tarefa que investiga a morte de Gritzbach determinou o afastamento do investigador e do delegado que aparecem na conversa gravada pelo empresário.
Esse é o segundo arquivo de áudio que deveria constar da delação de Gritzbach obtido pela reportagem. Em outra gravação, o empresário registrou conversa de um policial civil do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) com o advogado Ahmad Hassan, o Mude, investigado por lavagem dinheiro da facção.
No telefonema, o advogado concorda em aumentar o prêmio de R$ 300 mil para R$ 3 milhões pela morte de Gritzbach. O policial havia procurado o empresário para alertá-lo sobre os planos para matá-lo e pôs o telefone no viva-voz. Mude, que seria amigo de Cara Preta, pergunta: “Eu não gosto dessas fitas. Você acha que três (R$ 3 milhões) vai?” E o policial responde: “Vamos pensar em 3. Me fala depois”.
Mude insiste: “Você acha que três vai? Me liga e fala comigo. Você acha que tá fácil de resolver ou tá complicado?” O policial então diz ao interlocutor: “Tá facinho, mas tem os seguranças”. O homem que encomendava o crime faz uma última pergunta antes de desligar: “Passarinho tá voando direto?” E o policial responde: “Uma vez ou outra, mas tem um segurança” A reportagem não conseguiu contato com o advogado. Em seus depoimentos, ele sempre negou os crimes e alegou inocência.
A força-tarefa que investiga a morte de Gritzbach suspeita de que a voz na gravação seja do investigador Valdenir Paulo de Almeida, o ‘Xixo’. Ele foi preso pela Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco), da Polícia Federal, na Operação Face Off em companhia do também investigador Valmir Pinheiro, o ‘Bolsonaro’, sob suspeita de terem recebido R$ 800 mil em propina para interromper uma investigação sobre o tráfico de drogas. O Estadão não conseguiu localizar a defesa dos dois policiais.
‘Xixo’ e ‘Bolsonaro’ também estão entre os seis policiais afastados de suas funções em razão do inquérito sobre a morte de Gritzbach. Ou seja, mesmo que recebam a permissão de responder em liberdade às acusações do caso da Operação Face OFF, eles permanecerão afastados das funções. A decisão foi tomada pelo delegado Oswaldo Nico Gonçalves, que coordena a força-tarefa criada para apurar a morte de Gritzbach, seguindo a orientação do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite.
‘O que ele já colaborou tem validade’, diz promotor
Após a morte de Gritzbach, os promotores do Gaeco pediram à 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital a rescisão da delação de Gritzbach. O pedido foi assinado por cinco promotores do Gaeco.
Diz o documento: “Diante do falecimento do réu colaborador e considerando que a colaboração premiada é verdadeiro negócio jurídico processual intuitu personae (artigo 3º-A da Lei n.º 12.850/2013), o Ministério Público requer seja declarado extinto o presente acordo de colaboração premiada”. Do latim, intuitu personae significa adoção consensual.
Os promotores complementaram o pedido solicitando autorização para usar as provas já fornecidas em outras investigações. “Ainda, considerando a extinção da colaboração, o Ministério Público requer seja concedida autorização para que todos os elementos produzidos neste expediente e nos demais procedimentos autônomos instaurados em razão do presente acordo possam ser compartilhados com as autoridades competentes, especialmente para auxiliar nas investigações das circunstâncias que (...) envolveram o referido homicídio.”
Para o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, não é possível saber o tamanho do prejuízo às investigações. “Pedimos a extinção do acordo pelo falecimento do colaborador e a autorização para compartilhar as provas com as autoridades policiais competentes. Nesse caso era o correto a fazer porque aquele processo de delação pressupõe a participação do réu colaborador. Mas o que ele já colaborou tem validade”, afirmou.
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