Cenas comuns no centro de São Paulo, como usuários de drogas vagando pelas calçadas, estão cada vez mais frequentes na região da Avenida Jornalista Roberto Marinho, na zona sul. Moradores falam em uma “minicracolândia”. A avenida tem ainda barracas de sem-teto, acúmulo de lixo e entulho, além da falta de iluminação, segundo a vizinhança.
A Secretaria da Segurança Pública e a Guarda Civil Metropolitana afirmam reforçar o policiamento na área. A Prefeitura diz ter feito mais de 3 mil atendimentos na via por meio da pasta de Sssistência Social, além de investir em zeladoria e iluminação. É previsto ainda um edital para elevar a oferta de moradia na região (leia mais abaixo).
Inaugurada há quase 30 anos para ligar o Jabaquara à Marginal Pinheiros e nas proximidades da Ponte Estaiada, um dos cartões-postais da cidade. Na tarde da quarta-feira, 6, uma roda com quatro pessoas estava sentada na calçada nas proximidades da rua Barão de Jaceguai; um deles fumava um cachimbo - aparentava ser de crack. Uma lona azul tentava disfarçar a cena.
“É como se fosse outra Cracolândia.”, afirma Marco Braga, presidente do Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) do Brooklin.
O cenário de vulnerabilidade chama ainda mais a atenção por conta dos contrastes sociais. Os usuários de drogas se encontram na esquina da Roberto Marinho com a Avenida Vereador José Diniz e também entre as ruas Macedo Soares e Barão do Jaceguai.
A região conta com uma unidade do serviço municipal de Atendimento Diário Emergencial (Atende) para amparo e acolhimento de pessoas em situação de rua e em uso de substâncias psicoativas.
Andando a pé pelas ruas arborizadas do Campo Belo, Vila Cordeiro e Brooklin, alguns dos bairros atravessados pela avenida, é possível encontrar condomínios de alto padrão, escolas de tênis e até uma loja de equipamentos náuticos.
“A região sempre foi um ponto de tráfico, mas o fenômeno de cena de uso aberta é mais recente”, diz o psiquiatra Thiago Fidalgo, professor da Disciplina de Álcool, Drogas e Políticas Públicas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para Fidalgo, o fenômeno não resulta de uma migração de usuários da região central para a zona sul. As condições de vulnerabilidade do centro, como déficit habitacional, desemprego e dificuldade de acesso a serviços de saúde, se reproduzem em outros pontos da cidade, o que facilita a criação de novas cenas abertas de consumo de entorpecentes, na visão do especialista.
Embora o governo de São Paulo não contabilize o número de dependentes químicos, as aglomerações têm crescido, conforme moradores, e chamam a atenção da polícia. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a área da 2ª seccional, que abrange a região, registrou aumento em 37,2% nos entorpecentes apreendidos entre janeiro e setembro deste ano. Nesse período, foram apreendidos 356 quilos.
- A SSP diz fazer “monitoramento contínuo dos indicadores criminais, incluindo a região citada, e intensificar o policiamento preventivo e ostensivo, bem como ações investigativas, nas áreas de maior incidência criminal”.
- A Prefeitura afirma que o “policiamento foi reforçado na região, especialmente nas proximidades de escolas, e a Guarda Civil Metropolitana realiza o patrulhamento comunitário e preventivo com ajuda das câmeras inteligentes”.
- Sobre a escuridão na via, a SP Regula afirma que a iluminação pública do local teve melhorias, como “a instalação de extensores nos postes para maior eficiência da iluminação”.
Mais pessoas em situação de rua
Moradores apontam ainda o aumento da população em situação de rua na região. A percepção pode ser comprovada pela multiplicação das barracas de camping e lonas, utensílios que se tornaram um símbolo do aumento dessa população depois da pandemia.
Foi exatamente nessa época em que o ajudante geral Pedro Moreira da Silva, de 48 anos, perdeu o emprego. Sem condições de pagar aluguel, ficou ainda mais desamparado depois que o casamento de oito anos acabou. Passou a beber cada vez mais. Foi assaltado e ficou sem documentos, conforme relata. Não conseguiu mais sair da rua. Ele conta sua história, mas pede para não ser fotografado.
A ocupação também cria atritos com os vizinhos. O Estadão flagrou nesta quarta-feira, 6, dois funcionários da construção civil elevando um muro de um condomínio de alto padrão no Campo Belo, nas proximidades da Avenida Vereador José Diniz, ao lado de uma praça ocupada por sem-teto.
A advogada Elenir Nunes, síndica profissional que atua neste prédio e em outros quatro endereços da região, confirma a elevação do muro em 70 cm. “Eles jogavam vários objetos dentro do condomínio. Até facas”, justifica. Há reclamações também sobre sujeira e acúmulo de lixo.
A Prefeitura de São Paulo informa que as operações de zeladoria são realizadas diariamente e, por semana, cerca de 30 toneladas de lixo são recolhidas na avenida. “Somente em setembro o corte de mato foi realizado quatro vezes”, afirma, em nota.
As condições de vulnerabilidade social da região já desvalorizam os imóveis, de acordo com a síndica. Elenir conta que dois apartamentos do prédio que estavam à venda só foram comercializados depois de descontos da ordem de 40%. “Num dia, eles (moradores de rua) cumprimentam os moradores. No outro, eles estão claramente alterados e querem até brigar”.
Nesse contexto, a preocupação com a segurança se tornou prioritária em condomínios, diz Omar Anauate, presidente da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC). “A vulnerabilidade social deixa os moradores também vulneráveis pela possibilidade de roubos e assédio. As ações de segurança são prioridade”.
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informa que só na Roberto Marinho houve 1.037 acolhimentos e 1.969 encaminhamentos para a saúde de julho a outubro.
Atraso do monotrilho agravou problemas, dizem moradores
Para a vizinhança, um dos marcos da decadência da avenida foi o abandono das obras da Linha 17-Ouro do monotrilho do Metrô de São Paulo. Pessoas sem casa aproveitaram os canteiros das futuras estações Vila Cordeiro, Campo Belo, José Diniz e Brooklin Paulista para montar barracas.
A nova linha começou a ser construída em 2012, deveria estar pronta em 2014, como legado da Copa do Mundo - o que não ocorreu. Em 2021, duas novas construtoras foram contratadas pelo governo, mas andaram em ritmo lento, até que o contrato foi rescindido em 2023.
Só em setembro do ano passado, as obras foram retomados. Os canteiros parados por tanto tempo reforçaram a sensação de abandono e de degradação do patrimônio público, como aponta o morador Eduardo Beno, de 54 anos, dez deles como morador da região.
É a mesma visão do aposentado George Smetana, de 77 anos, que vive no entorno há sete décadas. Ele se orgulha de ter presenciado a construção da Avenida Bandeirantes e da própria Água Espraiada, antigo nome da Roberto Marinho. “A obra do metrô atrasou muito e isso atrapalhou toda a região.”
E tudo isso no escuro. Moradores afirmam que a avenida fica completamente às escuras, sem iluminação pública, em vários trechos, o que agrava a sensação de insegurança.
A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirma que as obras da Linha 17-Ouro estão avançando com a colocação das estruturas de coberturas, vidros de fechamento e acabamento das estações, instalação de passarela de dois níveis no Campo Belo e a via por onde os trens passarão, entre outras melhorias.
“Esse avanço das obras permitiu ao Metrô iniciar as tratativas com a Prefeitura para a retirada gradual das barreiras de segurança que interditam parcialmente trechos da via, que será feita ainda em novembro”, diz o Metrô.
Beno reconhece a retomada das obras, mas afirma que ela se dá apenas em alguns locais e está longe de ocupar toda a extensão da avenida. A previsão de conclusão da obra é no fim de 2025, com a possibilidade de instalação de sistemas para a abertura da linha em 2026.
Região convive com déficit habitacional há anos
A região também convive com grave déficit habitacional. São 24 comunidades que abrangem entre 5 a 8 mil famílias, apontam dados do Mapeamento Território Campo Belo, realizado em 2021 pelo Instituto Jatobás e Rede Espraiada.
Em 2022, uma das comunidades, a do Piolho, sofreu com um incêndio que atingiu cerca de 200 moradias. A favela fica perto do Aeroporto de Congonhas e ocupa uma quadra inteira às margens da avenida no Campo Belo.
Outra favela é chamada de Buté, grudada na avenida. Formada por casas antigas, mais precárias, a região possui ruas estreitas, muitos becos. Só é possível entrar lá acompanhado de um morador.
Maria Angélica Comis, coordenadora adjunta da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (Reduc) e moradora da região, afirma que faltam políticas públicas para habitação da população vulnerável. “Também tivemos reintegrações de posse de alguns imóveis sem atendimento adequado para a população”.
Formado em Gestão Pública, o morador Marcos Caetano Junior é autor do artigo 100 anos de Brooklin Paulista: as transformações e resistências no contexto da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada. Em sua visão, a área sofre com a especulação imobiliária.
“Apesar de seu objetivo de requalificação urbana, as operações urbanas acabam tendo o efeito contrário, agravando as divisões sociais e a expulsando moradores de baixa renda”, diz o presidente do Coletivo Água Espraiada Vive.
A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Habitação e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), afirmam que desenvolvem “estudo para requalificação viária” da Roberto Marinho, “no trecho entre a Avenida das Nações Unidas e a Avenida Washington Luís”, em parceria com a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento e a São Paulo Urbanismo.
Segundo o órgão, as obras “consideram a interface entre as obras do Monotrilho e as intervenções da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada”.
A CDHU tem um empreendimento de interesse social em construção na região (SP-Campo Belo A/B), com 590 unidades habitacionais, e lançou chamamento público para financiar 5,8 mil unidades em diversas regiões da capital, sendo 800 exclusivamente no entorno da Roberto Marinho.
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