Na paisagem dos que passam pelo Viaduto do Chá em direção ao “centro velho” de São Paulo, um pequeno gigante pode ser avistado entre construções de maior porte. O hoje aparentemente diminuto Edifício Sampaio Moreira já foi o mais alto prédio de toda a cidade, com cerca de 50 metros de altura, o que lhe conferiu o título informal de “avô” dos arranha-céus.
Na terceira fase de adaptações como sede da Secretaria Municipal de Cultura, o edifício chega aos 100 anos em 2024, de uma obra que se estendeu até 1927. O centenário será celebrado de forma discreta, com atividades na Jornada do Patrimônio, em agosto. O seu sucessor entre os mais altos, o Martinelli, está com uma programação para o aniversário de um século do início da construção.
O Sampaio Moreira reinou como o mais alto da cidade por anos, na Rua Líbero Badaró, enquanto o Martinelli foi concluído em 1934. Embora construído em um período de estímulo à verticalização e valorização do entorno do Vale do Anhangabaú, o “vovô” foi erguido em meio à oposição do então diretor de obras municipais.
No nível da rua, o Sampaio Moreira mantém um “inquilino” desde a inauguração: a Casa Godinho, empório fundado no século 19, considerado patrimônio imaterial da cidade e estabelecido no edifício há 100 anos. Ao todo, o edifício tem 12 andares, além do térreo, terraço e subsolo.
O projeto do avô dos arranha-céus foi desenvolvido em família, pelo engenheiro Samuel das Neves, o pai, e o arquiteto Christiano Stockler das Neves, o filho. Eles estiveram à frente de outros marcos paulistanos, como a Estação Júlio Prestes — conhecida pela Sala São Paulo e recentemente tombada como patrimônio cultural nacional.
Stockler das Neves também projetou o Museu de Zoologia da USP, no Ipiranga, e o Palacete Riachuelo, no centro, dentre outros. Influente, ele chegou a ser prefeito por alguns meses, em 1947, além de ter sido o primeiro diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Se hoje não é o prédio mais conhecido entre os paulistanos, o edifício foi endereço de escritórios, organizações e órgãos públicos diversos, como a Comissão das Obras de Saneamento da Capital e a Seção de Alistamento Militar e Divisão de Fiscalização Especial. Ao todo, eram 180 salas originalmente, readaptadas quando o prédio virou sede da Secretaria de Cultura.
O nome do prédio é em referência ao primeiro dono, o empresário José Sampaio Moreira, cujos descendentes mantiveram a propriedade por décadas. O edifício é tombado como patrimônio cultural da cidade desde 1992.
Sampaio Moreira marcou novo momento do Anhangabaú e da cidade
O “vovô dos arranha-céus” foi construído em um momento em que São Paulo estimulava a construção de prédios, com o Código de Posturas de 1918 e a lei que instituiu o “padrão municipal”, em 1920. A nova legislação permitia prédios mais altos do que até então era autorizado em vias de maior porte, e a Rua Líbero Badaró tinha acabado de ser alargada.
“A origem dos arranha-céus é nitidamente americana, com conotação simbólica da pujança e do progresso corporativo”, explica Nadia Somekh, pesquisadora de verticalização de São Paulo e professora da Mackenzie. “Aqui, em São Paulo, o Christiano Stockler atribuiu a si o primeiro, porque o Sampaio Moreira rompia o gabarito (altura vigente) e se destacava no skyline.”
A mudança foi influenciada em parte pela verticalização de Nova York. Na prática, contudo, o padrão seguiu bem distinto da cidade americana — que tinha ao menos dois prédios com mais de 200 metros de altura à época, segundo o Council on Tall Buildings and Urban Habitat.
“A partir da década de 1920, São Paulo passa a ter vários prédios mais altos despontando, mas se fala menos de outros. Essa história ficou eternizada no Sampaio Moreira”, aponta a professora de História da Urbanização da USP, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno. Um dos exemplos é o Edifício Casa Palmares, de Ramos de Azevedo, até hoje na esquina das Ruas Boa Vista e Três de Dezembro.
Nesse ritmo, o Sampaio Moreira acabou conhecido como “avô” dos arranha-céus, enquanto o Edifício Guinle (de 1913, com cerca de 36 metros, na Rua Direita) era o “bisavô” e o Martinelli viria a ser o “pai” (com cerca de 105 metros, entregue totalmente em 1934). “Foi um tal de demolir para fazer mais alto, uma cidade que se descarta muito rapidamente e vai metamorfoseando seu skyline, com ações individuais e o poder público, por meio dessas novas legislações”, diz a professora da USP.
Outro fator é que, naquele momento, a cidade se voltava para o Vale do Anhangabaú, recém-transformado em parque em meio às celebrações do centenário da Independência do Brasil. A mudança colocou o Sampaio Moreira em uma posição privilegiada.
“O plano de remodelação do Anhangabaú buscava um ‘embelezamento’, transformar aquele vazio de um rio canalizado em um grande parque, na maneira dos parques ingleses e franceses”, destaca a urbanista. “A Líbero Badaró e a (Avenida) São João estavam alargadas. Ao mesmo tempo, abre-se a Praça do Patriarca... Aquela era a fachada nobre da cidade. De uma cidade que antes dava as costas para o rio e que, naquele momento, fez, daquele lugar, a fachada principal.”
Voltado para o Anhangabaú, o edifício não é encoberto por nenhuma outra construção do outro lado da rua, pois o terreno frontal foi doado à Prefeitura e é área pública até hoje. Isso permite que seja avistado desde o Viaduto do Chá, por exemplo, mas é preciso ter um olhar mais atento para identificá-lo na paisagem. “Hoje, precisa ‘treinar os olhos’ para perceber. O skyline está tão alterado, tem tantas camadas de historicidade, que fica difícil ler as camadas”, avalia a especialista.
Na arquitetura, o Sampaio Moreira mantinha estilo eclético, com influências europeias e algumas americanas. Grande parte dessas características dos anos iniciais do prédio está preservada, como os elevadores, revestidos em vermelho e ainda em funcionamento, o pergolado do terraço e o piso de ladrilho hidráulico verde e amarelo da entrada.
Secretaria municipal e Casa Godinho: como está o edifício hoje
O Edifício Sampaio Moreira é sede da Secretaria Municipal de Cultura desde 2018. Passou por restauro e adaptação por anos, com um período de paralisação. Agora, está com obras nos primeiros pavimentos, para a implementação do auditório e da biblioteca do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH).
O prédio foi desapropriado por volta de 2010. Anos antes, em 2003, o Estadão noticiou que mais da metade dos andares estava vazia.
Na reabertura, a Prefeitura falou em um programa permanente de visitas guiadas, como existe na sede do Executivo, no Edifício Matarazzo. Por enquanto, não há previsão de programação fixa no local.
Em nota, a secretaria aponta que o centenário será celebrado com visitas guiadas durante a Jornada do Patrimônio. O evento anual conta com programação em diversos locais pela cidade e é previsto para agosto.
No térreo do edifício, funciona a Casa Godinho, antigo armazém secos e molhados, primeiramente instalado no entorno da Praça da Sé. O espaço costuma destacar a manutenção de um atendimento personalizado, como ao embrulhar produtos com papel até hoje.
“Casa Godinho sem Sampaio Moreira e Sampaio Moreira sem Casa Godinho não existe. São coisas intrínsecas desde o começo”, diz Miguel Romano, dono do empório. Ele não cogita um dia deixar o endereço.
“Posso arrancar prateleiras e colocar em outro espaço, mas o ambiente não será o mesmo. Tem um monte de empresas que tentam criar um ambiente fazendo decoração retrô, mas não é a mesma coisa. A Casa Godinho é verdadeiramente retrô: nasceu em uma época e sobrevive até hoje”, afirma. “Já me propuseram ir para os Jardins, shopping, Rio de Janeiro...”
Romano conta que o espaço atrai tanto novos clientes quanto frequentadores de décadas. “Tem pessoas que vem aqui e, às vezes, nem compram nada. É só para matar a saudade. Falam: ‘meu avô me trazia aqui’, ‘isso faz parte da minha vida’”, relata.
A Casa Godinho também recebe guias com turistas. “Quinze dias atrás, um ônibus de excursão parou aqui na porta e desceram 50 pessoas. Ficaram uma hora comprando.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.