Em resposta à mobilização para salvar o Cine Belas Artes, um novo tipo de proteção cultural foi criado em São Paulo há 10 anos, que foi aplicado provisoriamente ao tradicional espaço. A partir de então, por anos, pouco se falou em Zona Especial de Preservação Cultural - Área de Proteção Cultural (Zepec-APC) na cidade.
Isso mudou recentemente: ao menos seis pedidos de reconhecimento foram abertos ou discutidos na comissão técnica responsável em pouco mais de um ano. Em comum, os casos envolvem espaços alugados ou em comodato que se recusam a deixar o endereço, defendem a importância cultural da atividade que realizam e estão em locais valorizados, como nos “eixos de verticalização”, perto de estações de metrô ou ônibus. A “intensa disputa imobiliária” é destacada em pareceres técnicos.
Ao todo, quatros pedidos foram avaliados no âmbito municipal. Três obtiveram decisão favorável ao desenvolvimento de estudo de reconhecimento, o que resulta na classificação provisória como Zepec-APC. São eles: o Espaço Itaú de Cinema da Rua Augusta, o bar Ó do Borogodó e o Santa Marina Atlético Clube.
Já a solicitação de enquadramento do Museu da Casa Brasileira foi negada, enquanto o antigo endereço do espaço (o Solar Fábio Prado) foi temporariamente tombado.
Além disso, o conselho responsável irá avaliar em breve um pedido de Zepec-APC para o Esporte Clube Banespa, que está em uma disputa judicial contra o Santander. O parecer técnico é contrário por enquanto, mas um dos conselheiros pediu vistas na reunião da quinta-feira, 4.
E há solicitação de enquadramento do Beco do Batman, ainda não discutida na comissão, responsável pelo parecer inicial antes da decisão do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Parte das decisões foi pautada mediante determinação judicial ou teve votações em regime de urgência.
Em debates públicos, foi cogitada a abertura de pedidos para outros espaços então em fechamento, como a Livraria Cultura do Conjunto Nacional, o Bar Balcão e o Teatro Aliança Francesa. O reconhecimento desses espaços não foi, contudo, reivindicado oficialmente.
Em paralelo, estudos de tombamento de centenas endereços foram abertos no último ano na cidade, em movimento similar, especialmente em distritos com intensa transformação, como Pinheiros.
Essa onda de pedidos de Zepec-APC divide opiniões. Há contestações sobre a legalidade e aplicabilidade do instrumento, assim como referências a uma decisão negativa do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2000, que negou um “tombamento de uso” em Belo Horizonte. Os proprietários de imóveis enquadrados dessa forma têm se posicionado contrariamente.
Por outro lado, parte dos especialistas e envolvidos defende que seria a alternativa para preservar atividades tradicionais em espaços sem características para tombamento arquitetônico. E destacam que o enquadramento como Zepec-APC permite o acesso a incentivos municipais, como isenção de taxas.
A pouca aplicação do instrumento tem gerado dúvidas, principalmente na avaliação de projetos que alteram ou destroem o imóvel da Zepec-APC. O único pedido na cidade nesse âmbito envolve a construção de um prédio de uso misto no endereço do anexo do Espaço Itaú de Cinema, na Rua Augusta, região central de São Paulo.
A complexidade de avaliar esses pedidos fica evidente em um dos ofícios assinado por técnico municipal e juntado no processo do projeto. “Como avaliar se as alterações espaciais vão modificar negativamente apropriações sociais e culturais? De que maneira as novas configurações espaciais das salas de exibição propostas vão alterar as relações de convívio e fruição desses espaços? E, mais importante, como garantir que, mesmo se construindo novas salas de cinema, [...] a programação de exibição atualmente caracterizadora das salas atuais permanecerá?”, questiona.
O projeto para o anexo do cinema foi alterado após apontamentos da comissão especializada da Prefeitura, como a manutenção do mesmo número de salas de exibição e poltronas. A proposta foi aprovada pelo Conpresp, mas segue sob críticas.
Os críticos ao projeto atual defendem que o quintal, a árvore e o café do complexo também fazem parte da ambiência, cujas características deveriam ser mantidas no novo empreendimento. Um recurso aberto por uma associação de bairro foi arquivado na quinta.
Segundo o Plano Diretor de 2014, que a criou, a Zepec-APC envolve “imóveis de produção e fruição cultural, destinados à formação, produção e exibição pública de conteúdos culturais e artísticos”.
A lei aponta que são locais que precisam de proteção especial para a “manutenção da identidade e memória do Município e de seus habitantes” e a “dinamização da vida cultural, social, urbana, turística e econômica da cidade”.
A regra cita possíveis exemplos, como teatros, cinemas de rua, circos, centros culturais, residências artísticas e “espaços com significado afetivo, simbólico e religioso para a comunidade”. Além disso, permite que a classificação seja solicitada por qualquer pessoa e em qualquer momento. Um dos canais para a abertura de pedido é o 156, com o envio de algumas informações obrigatórias.
Restrições de atividades são mais comumente determinadas por meio da Lei de Zoneamento. Em geral, essas regras são impostas a quadras, não a imóveis específicos, e com menos restrições em comparação ao tombamento de uso. Além disso, alguns tombamentos de bairro também têm restrições de uso, como nos Jardins, onde é restrito majoritariamente à moradia unifamiliar.
A revisão do Plano Diretor e do zoneamento em 2023 não trouxe alterações significativas nesse tipo de proteção. Parte dos vereadores apresentou emendas para indicar a classificação para a sede da escola de samba Unidos do Peruche, a Cinesala e o Ó do Borogodó, mas não foram incluídas no texto final.
O que dizem os proprietários dos imóveis e os defensores das Zepec-APC?
Os pedidos e enquadramentos como Zepec-APC têm, em geral, opiniões polarizadas entre os proprietários dos imóveis e as organizações ligadas à atividade cultural realizada no espaço. Entre uma parte dos donos, há reconhecimento da importância dos espaços culturais, mas defende-se que não têm vínculo estrito àquele local e manteriam as características em outro endereço.
Já as organizações que defendem que suas atividades falam em vínculo local, com décadas de tradição e relação com a vizinhança onde estão inseridas. Também defendem que o enquadramento como Zepec-APC pode ser um ativo positivo, uma espécie de chancela do valor do espaço.
Entenda a seguir o panorama dos casos abertos e em discussão da nova onda de pedidos:
Ó do Borogodó
O bar e casa de espetáculos teve o enquadramento temporário como Zepec-APC aprovado em novembro. Ligado especialmente ao samba, o espaço está no mesmo endereço há mais de 22 anos, na região da Vila Madalena, zona oeste. Na resolução de enquadramento, são destacadas as mais de duas décadas de atividades e a “importância para a difusão, preservação e desenvolvimento do samba e do choro paulistanos”.
O reconhecimento foi solicitado pelo Instituto Casa da Cidade, com apoio do Ó do Borogodó. O bar é alvo de ação de despejo pelos proprietários do imóvel em que é localizado. O movimento pela preservação também obteve 3 mil apoiadores em um abaixo-assinado virtual.
Ao Estadão, os irmãos proprietários justificaram a necessidade de venda, diante do esvaziamento dos demais espaços do imóvel, custos de manutenção e motivações pessoais. Destacaram que o valor proposto pelo Ó do Borogodó seria “muito inferior” ao pedido. “Chegamos ao nosso limite e capacidade para, finalmente, tomarmos essas decisões”, pontuaram eles, que pediram para não ter os nomes divulgados.
Além disso, os donos argumentaram que a relevância do bar não está atrelada ao imóvel e, portanto, não se enquadraria como Zepec-APC. “O sucesso deles é devido a sua produção cultural, e não pelo espaço que um dia ocuparam”, dizem. “Um bar com a relevância do Ó é capaz de continuar sendo Ó em qualquer outro espaço.”
Espaço Itaú de Cinema da Rua Augusta
A Zepec-APC foi temporariamente reconhecida em março do ano passado, relativa a dois endereços da Augusta. A mobilização foi impulsionada diante da venda do imóvel do anexo do cinema, em 2022, e a apresentação posterior de um projeto imobiliário. Enquanto o restaurante mexicano do local trocou de endereço, o complexo cinematográfico segue em atividades.
A permanência é disputada na Justiça, com decisão favorável à reintegração de posse da empresa Rec Vila 15 em 25 de março. Um abaixo-assinado virtual pela permanência do anexo tem mais de 30 mil apoiadores. Também foi aberto pedido de tombamento tradicional, mas foi indeferido.
Na resolução de abertura do enquadramento temporário, é destacado que o espaço é um remanescente do período de difusão dos cinemas de rua. Enquanto a maior parte do complexo é dos anos 1940 (antigo Cine Majestic), o anexo passou a ter esse uso em 1995, embora com histórico anterior de exibições de filmes enquanto antiga sede do Instituto Goethe.
O proprietário do anexo chegou a apresentar o parecer de um arquiteto especializado, com a argumentação de que apenas o endereço principal teria características de cinema de rua e poderia virar Zepec-APC. Com o enquadramento temporário favorável, protocolou um novo projeto para o empreendimento, de modo a manter uma sala de exibições. Depois, passou por outras alterações após novas exigências da Prefeitura, como o aumento para duas salas.
Em nota, o Espaço Itaú de Cinema manifestou-se favoravelmente ao enquadramento como Zepec-APC de todo o complexo de salas da Augusta. “Se trata de um projeto cultural em sua integridade, onde cada parte atende a objetivos diversos e complementares”, destacou.
Santa Marina Atlético Clube
Conhecido especialmente pelo futebol de várzea e fundado por empregados da antiga Companhia Vidraria Santa Marina, o clube está em fase de tentativa de conciliação com a proprietária do imóvel, a multinacional do setor construtivo Saint Gobain.
O espaço é alvo de ação de reintegração de posse. Além disso, em 2021, o Ministério Público ajuizou ação para que o Conpresp avaliasse a possibilidade de reconhecimento do clube, o que resultou na Zepec-APC.
O enquadramento temporário como Zepec-APC ocorreu em agosto do ano passado, cuja resolução destaca o valor referencial, cultural e afetivo do clube, fundado em 1913 e sediado na avenida de mesmo nome desde 1949, na região da Água Branca, na zona oeste.
À época, a defesa da Saint Gobain alegou que o espaço não se enquadraria nesse tipo de proteção. Entre os argumentos apresentados, estão o fim das atividades do clube mediante a ordem de reintegração, dentre outros. Também disse que o caso resultaria em uma “desapropriação às avessas”, pois limitaria a exploração da área a um tipo de uso.
Esporte Clube Banespa
O pedido de Zepec-APC para a sede ainda não foi avaliado pelo Conpresp. O pedido foi aberto em nome do clube, com a apresentação de abaixo-assinado e de documentação técnica, que destaca os mais de 90 anos de história e a relevância social, esportiva e cultural. O espaço fica na Avenida Santo Amaro, na zona sul. Também foi pedido o tombamento tradicional.
Na reunião de quinta-feira, a solicitação foi pautada, mas adiada diante do pedido de vistas. O parecer técnico indica a possibilidade de abertura de estudo de tombamento, mas é contrário ao enquadramento enquanto Zepec-APC.
O clube está em em disputa judicial com o Santander, dono de grande parte da sede. Procurado, o grupo respondeu por nota.
“O Santander acompanha a análise dos órgãos competentes sobre eventual necessidade de preservação das condições arquitetônicas e urbanísticas do imóvel. Independentemente destas avaliações, a área é de propriedade do banco e será devolvida ao fim do contrato de comodato vigente, ou antes, caso a Justiça assim o determine. O processo ajuizado para retomada do imóvel busca demonstrar o não cumprimento de condições contratuais por parte do Clube”, respondeu.
O que dizem especialistas em patrimônio e urbanismo sobre a Zepec-APC
Relator das revisões do Plano Diretor e do zoneamento e conselheiro do Conpresp, o vereador Rodrigo Goulart (PSD) percebe relação entre o boom de pedidos de Zepec-APC e a transformação imobiliária.
Para ele, há tanto solicitações embasadas e que justificam o enquadramento quanto outras com motivações não diretamente ligadas à preservação do patrimônio. “Algumas discussões merecem. Em outras, é nítido que objetivo não é aquele que deveria ser”, diz.
Já o relator do Plano Diretor de 2014 e secretário municipal de Cultura durante a regulamentação da Zepec-APC, o urbanista Nabil Bonduki avalia que esse tipo de proteção foi retomada por pressão social.
Ele também vê elo entre o aumento dos pedidos de reconhecimento e a alta de empreendimentos imobiliários. No cenário de valorização, a venda do imóvel pode ser economicamente mais atraente ao dono do que o retorno obtido pelo aluguel a um espaço cultural, por exemplo.
Desse modo, com a iminência de despejos e demolições, há mobilização de inquilinos, associações e apoiadores pela preservação. “Não é solução infalível, mas garante a proteção com a possibilidade de transformação física. Compatibilizada a proteção com o desenvolvimento imobiliário”, afirma Bonduki.
Pesquisadora de patrimônio cultural, a arquiteta Mariana Pessoa aponta que a Zepec-APC foi criada para preencher uma lacuna nas políticas públicas, voltadas majoritariamente à proteção do patrimônio construído. “Há entendimento de que algumas questões de interesse coletivo se sobrepõem a interesses privados.”
Já a advogada Vivian Barbour, da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SP, tem entendimento distinto. Ela considera o tombamento de uso sem respaldos legal e instrumental que permitam uma aplicação. “A intenção foi positiva, mas peca porque se apropria dos mesmos mecanismos do tombamento. Tem uma rigidez para tratar de algo típico da dinâmica da cidade, que é o uso”, argumenta.
Para ela, pode-se pensar em outras formas de responder às demandas, de políticas públicas de incentivo a intervenções, como as placas do Inventário Memória Paulistana, instaladas em diversos locais. ”Há formas de celebração da memória que transcendem a preservação. Como obrigar alguém a fazer manutenção de determinada atividade econômica em determinado lugar?”, questiona.
Ligada a pedidos de Zepec-APC para o Museu da Casa Brasileira e o Espaço Itaú de Cinema — por meio de associações de moradores e de patrimônio — a advogada Celia Marcondes avalia que são uma resposta da sociedade diante de ações que considera insuficientes pelo poder público.
“Não falta legislação, falta compromisso. A lei está aí para ser usada. Fizemos análise e vimos que era pertinente em ambos os casos, que poderia se perder para a especulação, de forma gritante”, diz.
Como é aberto um pedido de Zepec-APC?
As solicitações são avaliadas por uma comissão especializada em Zepec-APC, formada por técnicos da Prefeitura. Posteriormente, são submetidas para a apreciação do Conpresp. O prazo oficial para a decisão definitiva é de até dois anos.
A demolição, a ampliação e outras intervenções nesses espaços precisam de autorização. Entre as exigências, estão manter área equivalente às atividades e aos valores que geraram o enquadramento.
O decreto que regulamenta a proteção permite a aplicação a locais com ao menos sete anos de atividades ou casos excepcionais quando há “clamor público”, comprovado pelo reconhecimento como patrimônio cultural imaterial ou abaixo-assinado com, no mínimo, 10 mil apoiadores.
Caso o proprietário do bem não mantenha o uso, pode ser submetido a um termo de ajustamento de conduta. O reconhecimento como Zepec-APC deve ser reavaliado a cada cinco anos, com a possibilidade de desenquadramento.
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