As construtoras Benx, You,Inc e MF7 foram multadas em R$ 31 milhões por terem recebido incentivos municipais para a construção de apartamentos nos distritos Lapa e em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, que deveriam ter sido destinados para famílias de baixa renda. Os valores foram divulgados pela gestão Ricardo Nunes (MDB) nesta quinta-feira, 30, após o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciar na Justiça o que chamou de “negligência” da Prefeitura em fiscalizar a destinação desses benefícios.
Em nota, a M.A.R. Hamburgo - empresa da Benx alvo da notificação - afirma que os compradores das unidades estavam “ligeiramente acima do limite permitido por lei” (R$ 112 e R$ 1,5 mil), defende a legalidade da “aquisição de imóveis por investidores, para posterior locação social” e diz seguir “rigorosamente” a lei.
Já o MF7 Eusébio - empreendimento da MF7 com a You,Inc - diz que “respeita a legislação em vigor à época do lançamento” e que as unidades foram vendidas para pessoas enquadradas no perfil de renda estipulado. Também respondeu que adotará “todas as medidas cabíveis para demonstrar o efetivo cumprimento das obrigações”.
Em ação civil pública na terça-feira, 28, a Promotoria requereu a suspensão da política de incentivos fiscais e urbanísticos municipais para a construção de edifícios com apartamentos para a Habitação de Interesse Social (HIS) — famílias com renda mensal de um a seis salários mínimos — e Habitação de Mercado Popular (HMP) — até dez salários mínimos. O pedido de liminar ocorreu após mais de dois anos de investigação, na qual a Promotoria identificou indícios de fraude e “falta de controle” na disponibilização do benefício, com possível “enriquecimento ilícito” de construtoras.
As multas envolvem os empreendimentos B.Side Faria Lima, localizado na Avenida Eusébio Matoso, em frente ao Shopping Eldorado, e Viva Benx Lapa, na Avenida José Maria de Faria, nas proximidades da Marginal do Tietê. Os valores das sanções envolvem apenas uma parte dos incentivos urbanísticos para esse tipo de empreendimento, de modo que complementares podem ser feitas pela Fazenda, relativas ao ISS.

Em comunicado, a gestão Nunes disse que as empresas “se beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam na modelagem”. Apontou ter instaurado 200 processos sobre casos semelhantes, os quais abrangeriam 24,6 mil unidades habitacionais, e diz que teria feito mais de 14 mil notificações.
Também afirmou que a revisão do Plano Diretor, em 2023, teria reforçado regras para garantir que essas habitações sejam destinadas a famílias de baixa renda. Isso inclui a exigência de comprovação da faixa de renda e averbação da tipologia do imóvel por 10 anos.
O procedimento de fiscalização do Município oficialmente foi estabelecido em portaria publicada em outubro do ano passado, mas os casos multados começaram a ser apurados alguns meses antes. Ao ingressar com a ação, a Promotoria apontou a falta de punição a casos suspeitos durante uma década da lei que criou os novos incentivos. “Há absoluta ineficiência administrativa em controlar fraudes”, avalia.
Ao longo dos processos de notificação iniciados no segundo semestre de 2024, a Prefeitura tem indicado que “os trabalhos de ‘fiscalização da destinação de unidades HIS e HMP’ realizados por este Deplan (Departamento de Planejamento Habitacional) têm sido motivados por encaminhamento de denúncia anônima recebida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo; e por envio de matrículas por parte de Cartórios de Registros de Imóveis”.
A gestão Nunes tem sido notificada sobre supostas irregularidades ao longo de todo o inquérito, aberto em 2022. Em dezembro, segundo consta do processo, comunicado interno da Prefeitura disse que iria deflagrar uma licitação para possivelmente terceirizar a fiscalização.
Desde o Plano Diretor de 2014, empreendimentos voltados a esse tipo de apartamentos têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de alguns milhões em bairros valorizados). Há, ainda, diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, uma verticalização mais acentuada.
À imprensa, Nunes disse que irá atuar contra irregularidades nesse âmbito. “A gente está falando de ato criminoso, que deve ser apurado”, declarou durante agenda pública nesta quarta-feira, 29. “A Prefeitura vai multar e cobrar, nem que seja judicialmente. Se vendeu para alguém fora da faixa, vai ter que pagar a outorga”, acrescentou.
Não há número total de quantos imóveis receberam o incentivo para HIS e HMP desde a lei de 2014. Levantamento parcial da Prefeitura indica que, de agosto de 2019 até outubro de 2024, foram mais de 446,5 mil unidades beneficiadas. O montante total abrange 143,3 mil construídas e 303,1 mil licenciadas ou em fase de construção, mas não se sabe o quanto não respeitou a legislação.
O MP identificou exemplos de provável destinação desses apartamentos para proprietários e locatários de maior renda. Há casos de microapartamentos construídos como HIS anunciados para aluguel mensal por mais de R$ 3 mil e vendidos a mais de R$ 600 mil em plataformas online, por exemplo.
“De forma deliberada ou não, (a Prefeitura) vem negligenciando seu dever legal de fiscalizar e controlar sua própria política habitacional, deixando de garantir que seu público-alvo seja atendido e de punir os infratores (construtoras e terceiros adquirentes)”, aponta o MP.

“A confessada falta de controle da política pública está possibilitando, por um lado, que construtoras que descumprem a legislação aplicável enriqueçam ilicitamente e, por outro, que as famílias vulneráveis (público-alvo) sejam preteridas no acesso à moradia.”
Não se sabe, também, o quanto de recursos públicos se abriu mão para o incentivo a esse tipo de construção. A Prefeitura disse nesta quarta que estaria fazendo os cálculos.
“A falta dessas informações impede ao gestor controlar a eficiência e o custo da própria política. (...) Não é possível saber até este momento se os incentivos concedidos às empresas privadas são proporcionais às moradias produzidas e efetivamente destinadas às famílias de baixa renda”, aponta o MP.
Parte dos casos em investigação envolve bairros nobres e de classes média e alta da cidade, como Vila Madalena e Itaim Bibi. Um exemplo destacado pela Promotoria, ao ingressar com a ação, é de unidades anunciadas a até quase R$ 1,5 milhão na Vila Olímpia — o que foi revelado pelo portal Uol.
“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.

Como são os empreendimentos multados?
Os R$ 31 milhões de punições impostos pela Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) se referem à estimativa de outorga onerosa que deveria ter sido paga (visto que a destinação não foi como prevista no benefício para HIS) somada a uma multa com o dobro do valor do que seria devido. Ambas foram notificadas no ano passado, com o prazo de apresentação de defesa. Os dois empreendimentos estão concluídos e já em uso.
A You,Inc e a MF7 foram punidas pelo B.Side Faria Lima, referido no documento oficial como MF7 Eusebio. O empreendimento fica na esquina da Avenida Eusébio Matoso com a Rua Jorge Rizzo, junto à passarela que dá acesso ao Shopping Eldorado. Nesse caso, a sanção foi de R$ 17,7 milhões.
O empreendimento tem 19 andares e 226 unidades consideradas como HIS-2 (três a seis salários mínimos). Na averiguação, o município identificou que há até apartamento sem o registro como habitação de interesse social na matrícula. À Sehab, no ano passado, os responsáveis pela construção responderam que os compradores declaram em contrato a ciência de que adquiriram uma HIS e que estão dentro dos parâmetros exigidos por lei.
Na internet, as unidades do B.Side Faria Lima têm sido anunciadas por preços ainda maiores. A reportagem encontrou nove apartamentos à venda e quatro para aluguel em uma conhecida plataforma virtual. Na venda, os valores são de R$ 540 mil a até R$ 1,5 milhão (um quarto, sem vaga de garagem). Em aluguel, chegam a R$ 4 mil mensais (sem a conta do condomínio). Além disso, outros proprietários têm anunciado locação de curta duração em plataformas especializadas.
Por sua vez, na sanção, a Benx é referida como M.A.R. Hamburgo Desenvolvimento Imobiliário SPE Ltda., nome relacionado ao empreendimento Viva Benx Lapa. O condomínio tem duas torres, de cerca de dez andares, com 282 unidades de HIS-2 (três a seis salários), de 34 m² a 37 m², com dois dormitórios. A sanção é de R$ 13,3 milhões nesse caso.

Ainda o valor da sanção publicado, a incorporadora também foi recentemente notificada pelo M.A.R. Evora, anunciado publicamente como Viva Benx Pinheiros. O endereço é na Avenida Eusébio Matoso, ao lado do outro empreendimento multado, em frente ao Shopping Eldorado.
Com 22 andares, o condomínio teria recebido incentivos para a construção de 177 apartamentos para HIS-2 (três a seis salários mínimos) e 19 de HMP (até 10 salários mínimos). “A empresa entregou documentos insuficientes à comprovação de que as unidades foram corretamente destinadas”, apontou o Município sobre a situação. No processo, menciona anúncios em plataformas virtuais com valores incompatíveis com a baixa renda, como uma unidade a R$ 750 mil.
Na apuração municipal, foram identificados ao menos dezesseis casos de HIS-2 com indícios de comercialização para famílias com renda superior ao previsto pela legislação municipal, além de dois imóveis vendidos para o mesmo casal. “A empresa recebeu diversas vantagens (isenção tributária de ISS e isenção urbanística referente à outorga onerosa) para, em contrapartida, alienar as unidades para famílias de baixa renda. Sem que o público-alvo tenha sido atendido, não se justifica a subsistência das benesses legais, como corolário do princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, diz em relatório.
Em todos os casos citados, as sanções da Prefeitura apontam “cancelamento da isenção ou redução do fator de interesse social, bem como a sua cobrança em dobro a título de multa, acrescida de juros e correção monetária”.
‘Fake HIS’ e ‘padrão reiterado de ilegalidades’
Também é mencionada uma expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.
Fala-se em “grande número de casos fraudulentos detectados pelos serviços extrajudiciais”. “O padrão reiterado de ilegalidades na implementação da política pública de produção privada de unidades HIS e HMP já foi detectado, inclusive, pelos Cartórios de Registro de Imóveis de São Paulo que, ao analisarem pedidos de registro de escrituras de compra e venda, verificaram a existência de fraudes”, aponta o MP.
No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios paulistanos, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. Além disso, foram identificadas pessoas físicas e jurídicas com mais de um apartamento com esse incentivo, em desacordo com a lei.
“Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP em um trecho da ação.
Na ação, o MP compara que o Plano Diretor de 2014 fez uma grande alteração na política de produção privada de HIS na cidade, ante a legislação anterior, de 2002. Se, antes, essa possibilidade envolvia convênios e consórcios junto ao poder público, passou a não ter uma exigência de regulação de oferta e demanda pelo Município e, ainda, ampliou a gama de incentivos.
“O desenho da política municipal destinou ao mercado a tarefa de controlar se indivíduos e famílias que adquirem as unidades de HIS estão ou não inseridos adequadamente nos critérios de renda estipulados pela legislação”, argumenta a Promotoria.
Também assinala que os incentivos atuais estariam “direcionados apenas ao agente produtor de HIS – e não aos beneficiários”. “Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social.”
O que o MP defende?
No texto, o Ministério Público aponta que a política de incentivo precisa ser suspensa temporariamente por ter sido “mal desenhada”. Descreve, também, a “precariedade no exercício de seu poder fiscalizatório” pela gestão municipal.
Por isso, argumenta que a política deve ser suspensa até o desenvolvimento de um “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários” e a definição de controle de preços de venda de unidades e locações.
“Não deve continuar sendo implementada até que o poder público adote novos mecanismos de controle e aferição de resultados, visando corrigir seu rumo ou, então, descontinuá-la”, destaca. “Quando o desenho da mesma política permite que desvirtuamentos passem desapercebidos como regra, é imperioso que todo esse desenho seja revisto com máxima presteza.”
A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Na avaliação deles, a situação resulta em danos sociais.
“Um universo indeterminado de famílias pobres foram impossibilitadas de ter acesso à moradia por conta dos valores exorbitantes estipulados, unilateralmente, pelo mercado imobiliário para aqueles imóveis”, assinalaram. “Está servindo para beneficiar (em grande parte) construtoras e pessoas de alta renda.”
Em resumo, o MP aponta os seguintes problemas em relação a essa política pública:
- inexistência de fiscalização se as unidades de HIS ou HMP estão sendo alienadas ou locadas para as famílias que se enquadram nas respectivas faixas de renda;
- falta de controle público dos preços das unidades habitacionais produzidas pelo setor privado a partir dos incentivos públicos concedidos;
- ausência de controle sobre o volume de incentivos públicos concedidos;
- não punição de infratores (empreendedores e adquirentes dos apartamentos);
- inexistência de indicadores de desempenho;
- desconhecimento sobre os efeitos da política municipal.