A Câmara Municipal de São Paulo aprovou nesta terça-feira, 29, o projeto de lei que libera a realização de shows e outros eventos de grande porte com a emissão de até 75 decibéis e a instalação de dark kitchens em áreas residenciais. Criticado por representantes da sociedade civil, o PL obteve o quórum qualificado na 2ª e definitiva votação, com 38 votos favoráveis, 11 contrários e uma abstenção, e será encaminhado para sanção pela gestão Ricardo Nunes (MDB). A proposta já havia sido aprovada em 1ª votação em 9 de outubro.
De autoria do Executivo e enviado para deliberação em maio, o projeto é voltado à regulação da atividade das dark kitchens, cozinhas industriais de produção de refeições para a venda por serviços de entrega. O texto passou por modificações. A mais criticada foi a inclusão do artigo 13, relativo ao novo limite de decibéis para o entorno de shows e eventos de grande porte.
A liderança do governo chegou a propor o limite de 85 decibéis, teto que foi reduzido para 75 decibéis. O limite se refere a eventos e shows de grande porte previamente autorizados pelo poder público, “assim definidos em decreto regulamentar, que por sua natureza não ocorrem de forma continuada”.
A mudança foi criticada por movimentos da sociedade civil e parte dos vereadores, por envolver um tema não diretamente ligado ao do projeto, o que popularmente é chamado de “jabuti”. Abaixo-assinados apresentados na Câmara reuniram mais de 20,8 mil assinaturas contrárias ao novo limite de decibéis.
Na sessão plenária desta terça, o vereador Celso Giannazi (PSOL) declarou que a bancada do partido pretende contestar o PL na Justiça. “É um jabuti sim, porque trata de questões diferentes”, afirmou. Ao Estadão antes da votação, o promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, Jorge Mamede Masseran, disse que entraria com representação para o procurador-geral do Tribunal de Justiça, pedindo a declaração da inconstitucionalidade da lei, caso fosse aprovada.
O projeto tem motivado críticas de associações de bairro e moradores por possibilitar o aumento do ruído em áreas hoje com emissão limitada a níveis inferiores, como 50 decibéis, a depender do zoneamento da vizinhança. A mudança deve atingir especialmente as vizinhanças de arenas, como o Allianz Parque e o Complexo do Anhembi.
Em plenária, a vereadora Silvia da Bancada Feminista (PSOL) criticou a proposta. “É um projeto com dois temas, que são muito ruins para a população”, disse, em referência à poluição sonora e de odores em vizinhanças residenciais. “Vamos piorar uma coisa que já faz mal pra população.” Como o Estadão mostrou, as queixas por barulho tiveram alta de 48% na cidade e superam o nível pré-pandemia.
O vereador Antonio Donato (PT) também argumentou que o projeto aprovado não define todos os parâmetros, que precisarão passar ainda por regulamentação pela Prefeitura. “Não está definido em nada, será tudo em decreto”, afirmou ele, que fez apelo para que o artigo sobre ruídos fosse discutido à parte.
Já a vereadora Cris Monteiro (Novo) lamentou a inclusão do artigo, pois votaria favoravelmente nos demais pontos do PL, relativos às dark kitchens. “Acho que o projeto das dark kitchens teve vários avanços”, afirmou. “Gostaria muito de ter tido essa discussão (do limite de decibéis) com meus pares, com a sociedade civil.”
Líder do governo na Câmara, o vereador Fábio Riva (PSDB) apontou que as alterações no PL sempre buscaram “o melhor equilíbrio”, para dar segurança jurídica aos estabelecimentos e propiciar um entendimento com os vizinhos das dark kitchens. Já o presidente da Câmara, Milton Leite (União Brasil), negou que o artigo sobre barulho seja um jabuti.
Para especialistas, a exposição prolongada a barulho alto pode causar danos ao corpo, como distúrbios de sono, doenças cardiovasculares e problemas à saúde mental. Parte dos vereadores de oposição, tem associado a proposta às três notificações que o Allianz Parque recebeu por violações ao Programa Silêncio Urbano (Psiu) no primeiro semestre, o que poderia implicar no fechamento administrativo. Em abril, por exemplo, um show no local chegou à medição de 74 decibéis.
Como o Estadão noticiou, o Ministério Público pediu à Câmara o parecer técnico que embasou o artigo e chegou a discutir uma eventual abertura de ação de inconstitucionalidade, sob alegações de falta de participação popular e desrespeito à Constituição estadual.
Em nota, a gestão Nunes afirmou que os esforços da Câmara e da Prefeitura “têm sido na direção de promover um debate amplo na busca da melhor definição de parâmetros de incomodidade de ruídos para regulamentar o artigo 146 da Lei de Uso e Ocupação do Solo (16.402/2016)”. “Tendo em vista que o projeto de lei das dark kitchens trata do regramento para uma atividade nova na cidade e de seus parâmetros de incomodidade, entendeu-se possível a inclusão no texto de definição de parâmetros de incomodidade de ruído nas situações não previstas anteriormente na legislação.”
Em reportagem do Estadão, Abraham Gurvitch, diretor de relacionamento com o mercado da Associação Brasileira das Empresas de Eventos em São Paulo (Abeoc), disse considerar os níveis de ruído previstos na nova lei razoáveis. “No dia do jogo do Brasil, eu estava sozinho na minha sala, com a TV ligada, os picos do decibelímetro foram de 80 decibéis. Está havendo um exagero. Os níveis da nova legislação são razoáveis. A sociedade evolui mais rápido que a regulamentação das atividades”, disse.
Procurada para comentar o projeto na manhã desta terça, a Real Arenas, administradora do Allianz, não se manifestou. Na audiência pública de 26 de maio, Claudio Macedo, CEO da WTorre Entretenimento, afirmou que a lei deve ser discutida de forma ampla. “Gostaria de intimar o IPT e o PSIU a fazer esses levantamentos e estudos nos vários ativos que estão sendo discutidos porque me parece que só um ativo está sendo discutido na lei. Quando a gente ouve a população, a maioria das reclamações não é desse ativo. A maioria não é falando do Allianz Parque”, afirmou Macedo.
A GL Events, gestora do Distrito Anhembi, informou que não ia comentar. Na audiência de 28 de abril, Rodolfo Andrade, diretor da empresa, compartilhou dados de um estudo interno para mostrar o retorno econômico dos eventos para a cidade. “15% ficam no destino do evento, e os outros 85% estão na cidade, estão nos empregos, estão na hotelaria, nos bares, serviços e restaurantes.”
‘Dark kitchens’: o que o PL aprovado na cidade de SP determina
As chamadas “dark kitchens” são cozinhas industriais voltadas exclusivamente à produção de refeições para entrega, geralmente por aplicativos, sem o atendimento de clientes no local. Moradores de vizinhanças com dark kitchens reclamam dos riscos de poluição sonora e atmosférica causada pelos exaustores e outros equipamentos. Também têm criticado a falta de clareza sobre como seria a fiscalização do setor. Outro ponto questionado foi a ausência de estudo de impacto ambiental desse tipo de atividade.
O texto aprovado enquadra esses espaços em duas subcategorias, a Ind-1b-1 e a Ind-2-1, classificações existentes para outros tipos de estabelecimentos, na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (a Lei de Zoneamento), de 2016.
O PL aprovado inclui as dark kitchens de três a dez cozinhas e com até 500 m² como Ind-1b-1. Na lei de zoneamento, essa classificação é voltada a estabelecimentos de fabricação de produtos de padaria, confeitaria, pastelaria e afins com “potencial poluidor”, em especial de odores, “passível de controle tecnológico”. É considerada “compatível com a vizinhança residencial no que diz respeito às características de ocupação dos lotes, de acesso, de localização, de tráfego, de serviços urbanos e aos níveis de ruído, de vibração e de poluição ambiental”.
Já a Ind-2-1 se refere aos locais com mais de dez cozinhas ou 500 m². Na Lei de Zoneamento, essa classificação é voltada a espaços de “preparação de alimentos, conservas, produtos de cereais, bebidas, dentre outros”. Nesse caso, trata-se de “atividade industrial geradora de impactos urbanísticos e ambientais, que implica a fixação de padrões específicos referentes às características de ocupação dos lotes, de acesso, de localização, de tráfego, de serviços urbanos e aos níveis de ruído, de vibração e de poluição ambiental”.
O PL determina que cada cozinha não pode ser menor que 12 m². Uma mudança no texto original delimitou um distanciamento mínimo entre cada dark kitchen, limitadas a um estabelecimento dentro de cada raio de 300 metros.
Os espaços deverão oferecer infraestrutura mínima para entregadores, como banheiros e água gratuita. O PL também determina que os estabelecimentos já em funcionamento tenham 90 dias para se regularizar.
Ainda segundo o projeto, a descarga de gases de exaustão deverá ser feita a uma altura de 5 metros em relação ao topo de todas as construções. Outro ponto é que os estabelecimentos não poderão reservar vagas na via pública como estacionamento para a retirada e entrega de mercadorias.
Também será exigido que a entrada dos estabelecimentos tenha uma placa com informações das empresas que utilizam o espaço. Além disso, os locais com mais de 100 m² terão de ter um bombeiro civil para garantir a segurança.
O PL das dark kitchens também não agradou a representantes do setor. Em nota, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) disse que o PL inviabiliza economicamente a manutenção dessa atividade. A nota cita a limitação da quantidade e do tamanho das cozinhas em determinas partes da cidade como “exemplos claros da inadequação da legislação proposta”.
“A regulamentação do setor, necessária e bem-vinda, precisa encontrar uma solução que atenda a necessidade de convivência pacífica entre as cozinhas profissionais e os vizinhos mais próximos sem, contudo, inviabilizar a manutenção das operações existentes e, o que seria ainda pior, impedir a abertura de novas unidades.”
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