A Câmara Municipal de São Paulo aprovou na noite de anteontem, em 1.ª votação, um projeto de lei que regulamenta as dark kitchens, cozinhas industriais que produzem refeições para entrega e/ou retirada, que tiveram grande aumento na pandemia. O mesmo texto prevê elevar de 55 para 85 decibéis (db) os limites de barulho em eventos e shows de grande porte na capital, desde que autorizados pelo poder público.
A inclusão do artigo motivou críticas de associações de moradores e do Ministério Público (MP-SP). Para os grupos contrários, esse patamar de barulho vai piorar a poluição sonora. Já os defensores do projeto – entre eles a Prefeitura – falam na necessidade de criar regras para os eventos.
Foram 40 votos favoráveis, 9 contrários e 1 abstenção. O projeto é de autoria do Executivo e o novo artigo tem características de um “jabuti”, por ter um tema não diretamente ligado ao do projeto, o que é negado pela Prefeitura.
O PL ainda vai passar pela 2.ª votação e pode ter mudanças. “É um absurdo o nível de 85 decibéis”, avalia o físico Marcelo de Mello Aquilino, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Ele explica que esse nível equivale a um liquidificador ligado na sala de casa, com janelas fechadas, com a pessoa a 1 metro do eletrodoméstico.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) fixa níveis de salubridade de até 50 decibéis. Ele acrescenta que o novo parágrafo indica média de 85 db, o que significa que o show pode alcançar patamares ainda superiores durante a realização. “Para ouvir essa média, os moradores já escutaram nível de ruído muito maior durante boa parte do evento”, diz.
Mudança valeria para toda a cidade
Se aprovada, a nova lei define ainda que os grandes eventos podem acontecer em qualquer região, desde que aprovados pela Prefeitura. Essa medida amplia uma iniciativa da bancada governista que tentou em maio, também em um projeto de lei, aumentar o limite de barulho nas Zonas de Ocupação Especial (ZOEs), áreas que incluem os Estádios Allianz Parque (zona oeste) e do Morumbi (sul).
“O projeto não afeta só quem é vizinho das ZOEs, mas qualquer lugar, inclusive na rua”, alerta Jupira Cauhy, representante dos moradores no Conselho de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz da Lapa.
Também preocupam as associações espaços como o Anhembi (norte) e o Anhangabaú, recentemente concedidos à iniciativa privada.
Jairo Edward De Luca, promotor do Meio Ambiente do MP-SP, vê “retrocesso ambiental” no PL e pediu à Câmara os pareceres técnicos que embasam o artigo. Se for aprovado, a tendência é o pedido de abertura de ação de inconstitucionalidade. As alegações são de falta de participação popular na decisão e desrespeito à Constituição do Estado.
A oposição no Legislativo critica o trâmite do texto. “O PL não trata da questão do limite de barulho, mas da regulamentação de cozinhas industriais. A questão do limite de som foi incluída como ‘jabuti’, já que o governo não conseguiu aprovar esse aumento em um PL próprio meses atrás”, diz a vereadora Luana Alves (PSOL). Para Fábio Cabral, da Associação Viva Pacaembu, em vez de mudanças desse tipo, a Prefeitura deveria se preocupar com a fiscalização. “Isso sim seria mais do que necessário.”
A Real Arenas, administradora do Allianz Parque, foi alvo de multas por causa do excesso de barulho. A gestora chegou a entrar na Justiça, ao ser notificada pelo Programa de Silêncio Urbano (Psiu), para evitar o fechamento administrativo, após um show da banda Maroon 5 em abril. Na semana passada, a empresa assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MP-SP e a Prefeitura. O acordo prevê mudanças para se adequar à legislação vigente, diminuindo os níveis de barulho na vizinhança. Com a mudança na lei, os moradores estão apreensivos quanto ao acordo.
Adelaide Nardocci, professora da USP, explica que a exposição à poluição sonora afeta a saúde. “Entre os efeitos crônicos (após exposições repetidas e prolongadas), os mais importantes são aumento do risco de doenças cardiovasculares; alterações no funcionamento do sistema endócrino, podendo resultar em obesidade abdominal; diabete tipo 2 e distúrbios do sono, que trazem prejuízos para a saúde mental e atividades diárias”, diz ela, da Faculdade de Saúde Pública.
Prefeitura fala em regulamentação; mercado destaca ganho econômico
A Prefeitura nega que o projeto de alteração do nível de ruído seja um “jabuti” e diz se tratar de regulamentação de atividade para a qual não havia fiscalização. Segundo nota da gestão Ricardo Nunes (MDB), o projeto altera a Lei de Uso e Ocupação do Solo, conhecida como Lei do Zoneamento, e essa norma já tem previsão legal sobre ruído.
“Bandas de música se equiparam a shows. Reuniões esportivas a jogos de futebol. O legislador excetuou essas festividades. O que o prefeito está colocando nesse projeto é que os grandes shows e eventos serão limitados a 85 decibéis. Queremos trazer segurança jurídica para os eventos, o que hoje não temos”, argumenta o líder do governo municipal na Câmara, Fábio Riva (PSDB).
Abraham Gurvitch, diretor de relacionamento com o mercado da Associação Brasileira das Empresas de Eventos em São Paulo, destaca efeitos positivos para a economia. “Os grandes eventos afetam a cidade de maneira positiva, trazendo turistas e renda, com hospedagem, consumo de alimentação, transporte, além de garantir empregos para milhares de pessoas”, afirma. A Real Arenas, administradora do Allianz, e o consórcio Viva o Vale, responsável pelo Vale do Anhangabaú, não se manifestaram. A GL Events, gestora do Distrito Anhembi, informou que não ia comentar.
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