PUBLICIDADE

Câmara abre brecha para prédio em Alto de Pinheiros, Morumbi e mais zonas restritas a casas

Emenda na Lei do Zoneamento foi aprovada em maratona de votações; vereador que fez proposta cita ‘universalização do acesso aos benefícios e às comodidades da vida urbana’

PUBLICIDADE

Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

Uma emenda à Lei de Zoneamento aprovada na “maratona” de votações da Câmara Municipal de São Paulo na terça-feira, 2, abre uma brecha para a verticalização de regiões exclusivamente de casas há décadas na cidade, como em trechos de Alto de Pinheiros, na zona oeste, e Morumbi, na sul, dentre outros. A mudança permite que quadras próximas a acessos de metrô, trem e corredor de ônibus virem “eixo de verticalização” mesmo que nas áreas classificadas hoje como Zona Exclusivamente Residencial (ZER).

Embora incluída na “minirrevisão do zoneamento”, a mudança altera diretrizes do Plano Diretor, mais importante lei urbanística da cidade. Isso porque a nova emenda retira as ZERs da lista de locais excluídos das “áreas de influência” das Zonas Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEUs).

Mudança no zoneamento pode abrir brecha para verticalização em parte do Alto de Pinheiros, do entorno da Estação Cidade Universitária até quadras próximas da Praça Panamericana Foto: Felipe Rau/Estadão

PUBLICIDADE

Ou seja, territórios com essa classificação de exclusivamente residencial não ficam sob as regras das zonas de eixo, onde há incentivos diversos para a construção de prédios altos. Essas áreas têm registrado a maior concentração de apartamentos lançados nos últimos anos em São Paulo.

A emenda também remove o trecho do Plano Diretor que garante que “nos perímetros das zonas exclusivamente residenciais ZER-1 e nos corredores existentes, não incidirão índices e parâmetros urbanísticos menos restritivos do que aqueles atualmente aplicados”. O texto foi publicado no Diário Oficial do dia da votação pelos vereadores e rapidamente lido durante a votação, em menos de 40 segundos.

Esse trecho foi aprovado em bloco conjunto com outras 39 emendas de alterações da “minirrevisão” do zoneamento, a maioria de mudanças na classificação de quadras pontuais de diferentes bairros paulistanos. O “pacotão” de votações se estendeu da manhã de terça até a madrugada de quarta-feira, 3, antes do recesso do Legislativo.

O zoneamento e o Plano Diretor determinam o regramento de diversos aspectos do dia a dia — como limite de barulho, altura máxima das construções e tipos de comércios permitidos — e também delimitam onde ocorrerão as principais transformações urbanas, como por meio de incentivos a mais apartamentos perto de estações de metrô e a indicação de novos parques.

Mudança no zoneamento pode impactar zonas exclusivamente residenciais perto de metrô, como na Vila Sônia Foto: Daniel Teixeira/Estadão - 16/10/2021

No geral, esse tipo de zoneamento envolve áreas valorizadas pelo mercado imobiliário, de classes média e alta na cidade. Enquanto o limite de altura em uma ZER é de 10 metros, não há gabarito máximo em uma zona de eixo. Áreas desse tipo têm diversos incentivos construtivos, a fim de aumentar a população que reside perto de transporte coletivo de média e alta capacidade.

Publicidade

Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que a alteração nas zonas exclusivamente residenciais está em desacordo com as diretrizes principais da legislação urbana vigente em São Paulo, de modo que pode ser contestada judicialmente. Também consideram que uma mudança dessa magnitude só poderia ocorrer após estudos e discussão em audiências públicas e em órgãos colegiados da Prefeitura. Isto é, não por meio de emenda publicada apenas no dia da votação.

A mudança não envolve todas as ZERs, pois parte delas está distante de metrô, trem e corredor de ônibus (como o entorno do Parque Cidade Toronto, na zona norte) ou envolve bairros tombados (Jardins e Pacaembu, por exemplo).

Outro aspecto que pode interferir na efetividade da emenda é o possível entendimento de que são válidos apenas eixos demarcados no mapa de zoneamento. A princípio, a emenda não faz alterações na representação cartográfica, mas apenas na parte textual.

Dentre as quadras que poderiam ser afetadas, estão entornos das Estações São Paulo-Morumbi e Vila Sônia, da Linha 4-Amarela, da Estação Sumaré, da Linha 2-Verde, e da Estação Cidade Universitária (em Alto de Pinheiros), da Linha 9-Esmeralda.

PUBLICIDADE

Também poderia incidir futuramente sobre vizinhanças onde há expectativa de obras de metrô, monotrilho e trem, como da possível Estação Cerro Corá, da expansão da Linha 2-Verde à oeste, e da Estação Indianópolis, da Linha 20-Rosa.

A emenda é do vereador Isac Félix (PL). Ao Estadão, por meio da assessoria de imprensa, o parlamentar respondeu que as justificativas estão nas emendas. Nesse caso, havia justificado que “após a implantação de sistema de transporte público coletivo em novos pontos da cidade, onde antes tínhamos apenas residências unifamiliares, nada mais natural do que atender ao texto explícito no capítulo II” do Estatuto da Cidade.

'Minirrevisão' das leis urbanísticas foi aprovada em meio a maratona de votações na Câmara Foto: Felipe Rau/Estadão - 02/07/2024

Em seguida, a justificativa traz três trechos do estatuto (que é uma lei federal), como o que fala da “universalização do acesso aos benefícios e às comodidades da vida urbana por parte de todos os cidadãos, seja pela oferta e uso dos serviços, equipamentos e infraestruturas públicas”.

Publicidade

O vereador é o mesmo que alterou a classificação de quadras de ZER vizinhas ao Jockey Club, na Cidade Jardim, como mostrou o Estadão. Também é autor de uma terceira emenda envolvendo zona exclusivamente de casas, que transforma em eixo de verticalização um trecho do distrito Moema (no perímetro formado pelas Rua Jacques Félix, Professor Filadelfo Azevedo, Domingos Leme e João Lourenço), na zona sul.

No dia da votação, o relator da “minirrevisão”, vereador Rodrigo Goulart (PSD), destacou que não era responsável pelas emendas apresentadas pelos demais integrantes do Legislativo.

Em nota, a Câmara disse que “os ajustes à Lei de Zoneamento ocorreram de forma legal, com participação popular e transparência nas Audiências Públicas e no plenário”. Também afirmou que “cada vereador tem a prerrogativa regimental de apresentar emendas, que também foram aprovadas de forma democrática pelo plenário da Câmara”.

Prefeito pode vetar mudanças

Em agenda pública nesta quarta-feira, 3, Nunes respondeu a jornalistas que alterações em leis são uma prerrogativa dos vereadores e que as votações ocorreram de forma democrática. Afirmou, contudo, que as mudanças serão avaliadas por técnicos e disse que poderão ocorrer vetos, a exemplo do que fez com a Lei de Zoneamento (parte dos vetos foi depois derrubada pelo Legislativo).

“Evidentemente, a análise técnica sempre vai caber ao final ao Executivo. Agora, vai caber a nós, o Executivo, (decidir) se vai sancionar na integralidade, se vai vetar alguns pontos”, destacou. Nunes tem 15 dias para tomar a decisão após receber a carta de lei (o que deve ocorrer nos próximos dias).

Outra emenda do vereador Isac Félix alterou ZER da Cidade Jardim, nas proximidades do Jockey Club Foto: Felipe Rau/Estadão - 24/04/2024

O que dizem os especialistas?

Especialistas ouvidos pelo Estadão consideraram que as emendas aprovadas fazem alterações significativas na legislação em vigor, de modo que não são apenas “ajustes finos”, como inicialmente descreviam os vereadores sobre a “minirrevisão”.

Também avaliam que mudanças nessas zonas mais restritivas poderiam ser debatidas na cidade, mas não alteradas em uma emenda praticamente desconhecida.

Publicidade

Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professora de Direito Urbanístico na FGV, Bianca Tavolari avalia que uma transição das ZERs para outro tipo de zoneamento poderia ser avaliada na cidade, mas não sem estudos, planejamento e discussão com as vizinhanças.

“Tinha de fazer discussão ampla sobre revisão dos parâmetros de ZER. Estamos desde 1972 protegendo essas áreas. Mas não é assim”, destaca. “Não é desse jeito que faz, até para que seja efetivo. Não tem segurança para a aplicação”, acrescenta.

A especialista considera que há grandes chances de judicialização caso esse trecho não seja vetado pelo prefeito, ainda mais ao considerar o “know-how” das associações de moradores de bairros que podem ser impactados. “Tem advogados próprios e estudam isso super no detalhe”, aponta.

Outro aspecto é a forma como ocorreu a votação: as emendas foram rapidamente lidas e, depois, divididas em dois blocos de votação, sem discussão sobre o conteúdo. Isto é, de uma vez, os vereadores aprovaram 40 emendas, enquanto, na sequência, rejeitaram as demais (grande parte de autoria da oposição).

“É o ‘modus operandi’ (da Câmara)”, aponta Tavolari. “Como não é fácil entender (o impacto das emendas, ainda mais em leis urbanísticas, de linguagem mais técnica), ninguém se revolta”, completa.

Ao centro, presidente da Câmara, Milton Leite (União Brasil), durante maratona de votações na Câmara; de costas, de terno claro, vereador Isac Félix (PL), autor de emendas que alteram ZERs Foto: Felipe Rau/Estadão - 02/07/2024

Consultor e ex-diretor do Departamento de Uso do Solo da Prefeitura, o urbanista Daniel Todtmann Montandon explica que toda a legislação urbanística paulistana envolve há anos dispositivos para proteger as ZERs. “Sempre foram intocáveis”, resume. Dessa forma, as emendas aprovadas vão em desacordo com esses preceitos sem que tenham sido debatidos ou totalmente alterados.

Ele pontua que as próprias revisões do zoneamento e do Plano Diretor do ano passado mantiveram esse entendimento, inclusive ampliando proteções a uma parte das vilas, por exemplo. “Não faz sentido mudança dessa magnitude em emenda”, resume. “Se poderia fazer um debate, mas de forma ampla, com muita transparência e o devido tempo”, conclui.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.