O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou nesta semana que a gestão estadual não prevê investir em novas câmeras corporais nas fardas dos agentes da Polícia Militar. Segundo ele, as bodycams não seriam efetivas para aumentar a segurança da população. Estudos, porém, contradizem esse argumento e apontam redução de letalidade policial com os equipamentos.
“Os contratos que nós temos de câmeras corporais permanecem. Mas qual é a efetividade das câmeras corporais na segurança do cidadão? Nenhuma”, disse o governador, em entrevista à TV Globo.
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O Estadão consultou três estudos sobre o uso da tecnologia pelas forças de segurança feitos no Brasil nos últimos três anos. As pesquisas apontam que o principal impacto positivo é a redução de mortes cometidas pelas polícias em serviço, índice que pode ser comparado na série histórica com base no monitoramento feito pelos governos estaduais. Também há aumento da apreensão de armas dos bandidos.
Ainda conforme especialistas, o uso das câmeras ajuda a inibir eventuais situações de corrupção ou outras irregularidades cometidas pelos agentes de segurança.
Em São Paulo, já foram implementadas 10,1 mil câmeras corporais, distribuídas em 63 batalhões (quase metade do total) e unidades de ensino da PM. O número está no mesmo patamar há praticamente um ano, sem perspectiva de incremento.
A adoção das câmeras corporais é uma tendência observada há pelo menos uma década, especialmente por forças de segurança pública de países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido.
Mais recentemente, o modelo ganhou força também no Brasil e, até julho do ano passado, já era usado de forma permanente em oito Estados. Nos batalhões do Rio, isso ocorreu após determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin.
Saiba mais sobre os estudos:
Batalhões com câmeras reduziram mais as mortes cometidas por PMs
Na contramão do que disse o governador, o uso de câmeras por PMs de São Paulo tem ajudado a reduzir as mortes cometidas por PMs em serviço. Segundo estudo feito pelo Fórum de Segurança Públia e pelo Unicef, braço das Organização das Nações Unidas para a infância, houve queda de 62,7% nos óbitos decorrentes de intervenções do tipo de 2019 a 2022.
Em batalhões onde os agentes já utilizavam a tecnologia, a queda chegou a 76,2%, mais do que o dobro da redução observada no resto da corporação (33,3%). Como mostrou o Estadão, as câmeras ajudaram a diminuir de forma expressiva os óbitos de adolescentes.
Especialistas afirmam que a diminuição das mortes também ocorreu por conta de medidas como a criação, pela PM, de uma comissão para analisar ocorrências de mortes por intervenção policial, mas foi impulsionada pela adoção das câmeras operacionais portáteis (COPs).
Eles reforçam que a política tem dado certo no Estado não só pela tecnologia em si, mas pelos protocolos para gestão e controle das imagens. São Paulo é considerado pioneiro em adotar a gravação ininterrupta das imagens – em outros locais, a captação costuma ocorrer só quando o sistema é acionado por um agente ou uma central.
Outro ponto é que, no Estado, o armazenamento é feito em uma nuvem contratada junto à Axon, empresa que fornece os equipamentos aos policiais, o que diminui a margem para exclusão ou edição dos vídeos. Essa especificidade fez com que o Programa Olho Vivo (das bodycams) dependesse menos de aspectos subjetivos, mas isso não significa que a medida está imune a fatores externos.
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Estudo da FGV também mostra impacto das câmeras nas mortes
Estudo encomendado pelo comando da PM paulista ao Centro de Ciência Aplicada em Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), divulgado no final de 2022, apontou que o uso de câmeras corporais nos uniformes da Polícia Militar evitou 104 mortes nos primeiros 14 meses de introdução das câmeras corporais. Esse número considera apenas a região metropolitana da capital.
Os pesquisadores acompanharam, entre junho de 2021 e julho de 2022, a evolução da criminalidade em áreas de companhias antes e depois da adoção das câmeras operacionais portáteis e a compararam com os dados de unidades que nunca haviam usado o equipamento até então.
O estudo aponta que as câmeras corporais reduziram em 57% o número de mortes decorrentes de ações policiais em relação a unidades policiais onde, até aquele momento, não havia a implantação da tecnologia. Ainda conforme o material, o Programa Olho Vivo provocou aumento de 24% do total de apreensões de armas e de 102% dos registros de casos de violência doméstica.
Como mostrou o Estadão na época, as conclusões do estudo ajudaram a enfraquecer o discurso adotado na campanha eleitoral pelo governador e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, de que as câmeras inibiriam, diminuiriam e constrangeriam os policiais durante o trabalho.
Em janeiro, no início do mandato da gestão Tarcísio, Derrite afirmou ao Estadão que pretendia ampliar o uso de câmeras na Polícia Militar. O governador também moderou o tom adotado durante a campanha, mas voltou a preterir o programa em declarações recentes. “No momento existem outras prioridades para a aplicação dos recursos”, disse, em outubro.
Santa Catarina apresentou resultados positivos já em 2021
Os resultados positivos das câmeras corporais não se restringem a São Paulo. Em Santa Catarina, um estudo publicado no fim de 2021 apontou que os equipamentos levaram à redução de 61,2% no uso da força (como contatos físicos e uso de algemas) pelos agentes, com melhoria também na eficiência dos registros e encaminhamento dos casos.
O estudo apontou que, no grupo de agentes com câmeras, o encaminhamento de ocorrências à Polícia Civil foi 9,2% mais frequente e incluiu vítimas também mais vezes (19,6%). Casos de violência doméstica foram mais reportados por policiais que possuíam o equipamento de gravação. Interações negativas foram reduzidas em 44,2%.
Como mostrou o Estadão na época, cerca de 450 policiais participaram do estudo, dos quais 150 usaram as câmeras e os outros 300 participaram do chamado grupo controle, o que permitiu comparação adequada do efeito dos equipamentos. Os dados foram coletados em ocorrências de 2018. A PM de Santa Catarina começou a usar as câmeras corporais em julho do ano seguinte – e tem ampliado o programa desde então.
Alta letalidade por PMs em serviço no último ano chama a atenção
A alta da letalidade policial no último ano, puxada por casos envolvendo PMs em serviço, chamou atenção de especialistas. Só na Operação Escudo, deflagrada em julho no Guarujá após a morte de um policial da Rota, foram 28 mortes. Moradores relataram abusos e episódios de violência policial como forma de retaliação. A Secretaria da Segurança nega excesso e tem dito que apura os relatos.
No último mês, dois agentes da Rota, tropa de elite da PM, tornaram-se réus por homicídio duplamente qualificado após a Justiça receber denúncia oferecida pelo Ministério Público (MP-SP). Eles são acusados de tampar suas câmeras corporais e plantar uma arma de fogo para forjar um confronto na Via Zilda, no Guarujá.
Em resposta à operação, a Defensoria Pública do Estado e a ONG Conectas Direitos Humanos pediram o uso obrigatório das COPs nas operações destinadas a responder ataques praticados contra PMs em São Paulo, mas tiveram o pedido negado pelo Tribunal de Justiça (TJ-SP) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar disso, o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, defendeu na decisão a importância do equipamento.
Em 2023, o Estado cortou cerca de R$ 37 milhões do orçamento de R$ 152 milhões previsto para o Programa Olho Vivo, redução de mais de 20% do que seria destinado à manutenção das câmeras corporais, segundo levantamento feito por pesquisadores da USP a pedido do Estadão.
“As câmeras são, na verdade, um indutor do bom comportamento do policial. Elas não prejudicam o trabalho policial: ao contrário. Só quem precisa se preocupar é o mau policial”, afirmou ao Estadão o coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública.
“O retrocesso em uma prática que se mostra solidamente benéfica para a população e para as corporações policiais seria uma perda enorme e a decisão deve ser reconsiderada”, diz nota desta semana assinada pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, Conectas Direitos Humanos, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, Instituto Igarapé e JUSTA.
Secretaria da Segurança diz que programa está mantido
Questionada sobre possíveis estudos que embasam as declarações dee Tarcísio e a continuidade do Programa Olho Vivo, a Secretaria da Segurança Pública afirmou, em nota, que o programa de câmeras corporais “está mantido” pelo governo.
Segundo a pasta, “os contratos de manutenção dos equipamentos estão ativos e possuem orçamento previsto para este ano”. “Atualmente, a Secretaria de Segurança Pública possui 10.125 câmeras operacionais portáteis (COPs) em uso, que abrangem 52% das unidades policiais do Estado”, afirmou.
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A pasta complementou que, com o orçamento aprovado para este ano, a secretaria irá investir em “novas tecnologias e na ampliação de equipamentos para monitoramento em todo o Estado, com a finalidade de combater o crime organizado e desarticular a cadeia logística das quadrilhas que atuam no tráfico de drogas e de armas”.
“Neste sentido, está em andamento a licitação para a compra de 3 mil leitores que serão acoplados nas viaturas, assim como o sistema que possibilita o funcionamento dos equipamentos. Essas câmeras poderão, por exemplo, identificar veículos roubados”, afirmou a secretaria.
Outra prioridade para o ano, segundo a pasta, é o Muralha Paulista, iniciativa que interliga informações de câmeras de todo o território estadual às forças de segurança. “Somente em 2023, 19,3 mil infratores foram detidos pelas forças de segurança com auxílio da tecnologia”, diz a secretaria. “Ao todo, já são mais de 7,4 mil câmeras ativas.”
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