SÃO PAULO - Camilly Rodrigues, de 30 anos, sabia que era a noite dela. Foram seis meses e duas plásticas de preparação: uma rotina de academia, dieta rigorosa e samba, muito samba. Não que precisasse ter turbinado o silicone e branqueado os dentes com lâminas de porcelana para chamar atenção no concurso de rainha do carnaval de São Paulo. Com 1,80 metro (fora o salto), cabelo na altura da cintura e morena, Camilly é do tipo que não consegue ir à padaria sem ser notada. “Se eu tiver de burca, vão olhar para mim do mesmo jeito”, brinca. Não deu outra. Ao fim da noite, com a faixa no peito, sentiu-se uma mulher realizada. Ainda que tenha nascido, só nascido mesmo, menino.
Pela primeira vez, o carnaval de São Paulo tem uma corte LGBT oficialmente reconhecida pela União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp). O concurso foi realizado anteontem. Integrante da Mocidade Unida da Mooca, Camilly foi eleita “Rainha Transexual”. A escola também teve o “Passista de Ouro LGBT”, Adson Tretinni. Ainda foram premiadas a “Rainha Transformista”, Sthephanny Monphettiny, da Barroca da Zona Sul, e a “Rainha Drag Queen”, Fabyany Carraro Brasil, da Império Real. Irreverente, a última categoria foi pensada para corresponder ao “Rei Momo” da corte tradicional.
Camilly não nasceu no samba. Até costuma frequentar a Vai-Vai, mas desfilar mesmo, nunca desfilou. No ano passado, acordou de sobressalto na madrugada. “Vou ser rainha do carnaval.”
Exceto pela sandália que quebrou ainda no camarim (ela tinha uma reserva), nada saiu do planejamento de lá para cá. “Foi tudo perfeito. Havia muitas candidatas bonitas, mas eu ralei muito”, diz a rainha. “Você não escolhe o samba, o samba que te escolhe. Nasce do coração.”
Presente nas avenidas desde 2002, o controlador de acesso Cleiton dos Santos, de 27 anos, também não escondeu a alegria por integrar a realeza LGBT. Gay assumido desde os 12, ele deu vida à personagem Sthephanny Monphettiny no concurso. “Ao contrário da drag queen, que é mais caricata e extravagante, a transformista foca no lado mais feminino, elegante e clássico”, explica. “Uma ia sair com a faixa, graças a Deus eu tive essa sorte.”
Com passagem por várias escolas, Adson Tretinni, de 32 anos, o Passista de Ouro, lembra da importância do concurso. “Eu me sinto muito orgulhoso que, em meio a tantas lutas, a gente conseguiu ter um espaço oficial”, diz. “É gratificante saber que não estamos sós.”
“Não se faz uma escola de samba sem alguém do segmento”, diz Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Uesp. Segundo diz, no entanto, o preconceito ainda existe. É só olhar o número de 27 candidatos para mais de 70 escolas. “Tudo é muito velado. Mas enquanto houver preconceito, o segmento LGBT precisa ter representatividade na corte.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.