A concessão dos cemitérios municipais de São Paulo à iniciativa privada tem sido alvo de reclamações, desde a cobrança de preços abusivos para velórios e sepultamentos, falta de transparência sobre gratuidade até os valores pela cobrança por manutenção. Auditoria do Tribunal de Contas do Município (TCM) revelou ainda problemas de manutenção, como ossadas expostas e até um crânio solto em unidades.
Após pedido do PCdoB, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou no domingo, 24, que os cemitérios retomem os preços dos serviços funerários praticados antes da concessão. O ministro fala em “práticas mercantis” em desacordo com “preceitos constitucionais”. A medida - que foi questionada por especialistas (leia mais abaixo) - depende do aval do plenário do STF para ser mantida.
As concessionárias do serviço dizem seguir “rigorosamente as diretrizes e a política tarifária definida no edital de concessão’ e afirmam divulgar as gratuidades. Já a Prefeitura afirma que a transferência da gestão para a iniciativa privada melhora a eficiência e a qualidade do setor. A concessão teve início em março de 2023, sob a gestão Ricardo Nunes (MDB).
A SP Regula, agência responsável por supervisionar a prestação do serviço das concessionárias que administram os 22 cemitérios municipais, afirma ter recebido 11 reclamações sobre “exumação e translado/transferência de corpos” e “homenagem fúnebre, velório, sepultamento e cremação” no primeiro semestre deste ano. Em 2023, foram 12 chamados, de acordo com o órgão.
A Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente do Legislativo apresenta outros números: 127 registros, classificados em “reclamações, denúncias, elogios e pedidos de informação” neste ano. A maioria se refere a pagamentos de taxas.
- Antes da decisão do Supremo, representantes das concessionárias vinham sendo convocados à Câmara Municipal de São Paulo para esclarecimentos.
- A Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente do Legislativo planeja visita surpresa aos cemitérios para checar a qualidade dos serviços prestados, segundo o vereador Rubinho Nunes (União), presidente da comissão.
O poder municipal afirma também que fiscaliza as concessionárias. Conforme a SP Regula, os quatro consórcios - Consolare, Cortel SP, Grupo Maya e Velar - receberam 149 autuações desde março do ano passado, início da concessão do serviço funerário no município. Desse total, 22 foram convertidas em multas.
A SP Regula afirmou que “intensificou a fiscalização do serviço e o monitoramento do cumprimento das cláusulas contratuais”, com 25 fiscais de serviços públicos e um verificador independente.
Usuários reclamam de taxas e cobranças abusivas
- O Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep) diz que o valor do sepultamento mais simples subiu de R$ 408,04 para R$ 1494,14. O sindicato afirma ainda que as concessionárias modificaram o cardápio de produtos e serviços para dificultar as comparações.
- As concessionárias questionam os valores. “O funeral adulto mais barato, incluindo urna, enfeite floral, sala de velório, transporte e outros serviços era oferecido pelo SFMSP (Serviço Funerário da Prefeitura) por R$ 754,73. Na concessão, os mesmos serviços custam R$ 566,04. Valor é inferior em 25% ao cobrado na tabela do SFMSP”, informou a Velar em nota.
- A SP Regula informa que a “comparação de preços do serviço funerário da cidade de São Paulo feita pelo Sindsep contém erros graves, como incorreta classificação de pacotes, troca de valores entre serviços e confusão entre os pacotes comercializados antes e depois da concessão”. A Prefeitura divulgou outra tabela comparativa (acesse aqui).
- A revisão dos preços por decisão do STF pode reduzir em 80% o custo dos velórios mais simples. Hoje o valor do chamado pacote básico é de R$ 1,5 mil Com a mudança, sairá por R$ 320 (já corrigido pela inflação via IPCA). Por outro lado, haverá elevação do preço do enterro na categoria de luxo, passando de R$ 5,7 mil para R$ 13,9 mil (valores mais caros).
- A Prefeitura afirma que, com a concessão, foi incluído desconto de 25% em planos para a população de baixa renda e a gratuidade para pessoas vulneráveis inscritas no CadÚnico.
O engenheiro mecânico Antonio Carlos Palmieri, de 73 anos, recebeu boleto no valor de R$ 1.011,80 para manutenção do cemitério Quarta Parada, na Água Rasa, zona leste de São Paulo.
Segundo ele, o valor não condiz com os serviços oferecidos e reclama que o cemitério tem áreas abandonadas, entradas laterais trancadas e faltam serviços de mobilidade.
“É importante que a manutenção seja igual em todo o cemitério e que as portas da parte superior sejam abertas par que pessoas idosas, como eu, não tenham que caminhar em subida. O valor de R$1.011,80 por uma manutenção mal feita é demais. Já seria um valor alto se fosse bem feita”, diz.
A Consolare informa que a “taxa segue tabela da Prefeitura de São Paulo no contrato de concessão e é calculado conforme o tamanho do espaço cedido, podendo ser parcelado”. A SP Regula, no entanto, disse que mandou suspender a cobrança dessa taxa.
A concessionária informa ainda que o cemitério recebeu investimento de mais de R$ 10 milhões, “atendendo a todos os requisitos do caderno de obras do edital de concessão” e diz oferecer carrinho elétrico e dois carrinhos de velório.
“Por questões de segurança, o acesso ao cemitério foi direcionado para a entrada principal, que foi reformada e recebeu nova pavimentação”, diz a concessionária.
Sobre críticas de abandono, a empresa afirma que “a manutenção individual dos jazigos permanece sob responsabilidade do titular”.
O Estadão também teve acesso a uma troca de mensagens de uma família de Mauá, na grande São Paulo, que buscava enterro para o Cemitério da Saudade, administrado pelo Grupo Maya. Por meio de mensagens via WhatsApp, a família solicitou o sepultamento mais simples. Mesmo assim, a atendente ofereceu um jazigo familiar de R$ 12 mil.
O caso foi revelado pela vereadora Silvia Ferraro (PSOL), na Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara de São Paulo. “As denúncias mais comuns são de cobranças abusivas, de valores cheios de penduricalhos. Além disso, não informam o valor do plano básico, informam logo o valor mais caro”.
O Grupo Maya, por sua vez, diz ter melhorado o “atendimento, deixando ainda mais visível a tabela de preços, para que o cidadão entenda todos os serviços disponíveis conforme suas necessidades”. Afirma ainda que “o valor passado foi para a compra de um jazigo, que é um bem permanente”.
Também responsável pelos cemitérios Campo Grande, Lageado, Lapa, Parelheiros, o Maya é o campeão de infrações, com 51 do total de 134. Entre elas estão a reclamação pela cobrança do uso da capela por R$ 500 por hora - antes, o uso era gratuito.
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A concessionária afirma que a capela está aberta das 8 até 17 horas, além de ser gratuita para encontros ecumênicos e rezas. “Para cerimônias privadas, como velório, que tem duração de até 4 horas, é necessário agendamento prévio e o valor para esse uso exclusivo é de R$ 541,25″, diz a concessionária.
Decisão foi tomada com base em argumentos genéricos, diz professora
Professora de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Vera Monteiro afirma que ele concedeu a liminar sem analisar detalhes do contrato. “O que me surpreendeu na leitura da decisão do ministro Flavio Dino foi que ele ter feito referência única e exclusivamente à notícia de jornal. Não ter articulado nenhuma cláusula contratual; não ter feito a avaliação de que se trata de um serviço público concedido que foi feito com base numa licitação”, disse ela à Rádio Eldorado.
Para ela, a inadequação dos valores foram feitos com base em argumentos muito genéricos, como a dignidade da pessoa humana.
Esse é o mesmo entendimento do advogado Rafael Marinangelo, pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP e especialista em Direito da Construção e Processos Licitatórios.
“O ministro concedeu essa decisão em caráter liminar, ou seja, apenas com base nos argumentos do PC do B e nas matérias jornalísticas por ele apresentadas. Ele não ouviu nem a prefeitura nem o concessionário. Esta, talvez, não tenha sido a melhor solução, pois causa insegurança jurídica para aquele que assumiu essa essa atividade”.
Procurado, o gabinete de Dino não se manifestou.
Os especialistas também apontam a necessidade de ajustes no modelo. “No caso da concessão funerária, a acusação é de que a modelagem econômica do negócio teria assumido preços excessivos a serem cobrados do público. Quanto a isso, cabe à Prefeitura demonstrar os elementos técnicos que suportam as premissas contratuais assumidas”, afirmou a especialista.
“O importante é encontrar uma equação em que os contratos sejam respeitados e que a população tenha os melhores serviços”, acrescentou Sandro Cabral, professor de Estratégia e Gestão Pública no Insper.
Prefeitura classifica decisão do STF como ‘retrocesso’
A Prefeitura classificou decisão do STF como “retrocesso”. Em nota, a administração municipal informou que a determinação do Supremo “elimina o desconto de 25% do funeral social garantido pela nova modelagem” e “provoca perda de benefícios”.
Nunes disse que enviou uma mensagem a Dino e afirmou que iria ligar para esclarecer a situação. “Só pode ter sido levado a erro”, afirmou. O prefeito ainda não confirmou, porém, se iria recorrer.
“O que a gente teve de avanço, a gente vai permanecer. Você não pode ter uma decisão judicial que prejudique a população. O ministro Flávio Dino é bem intencionado, estava sem informação”, afirmou na segunda, 25.
O caso será analisado pelo plenário virtual do STF, em sessão agendada de 6 a 13 de dezembro. Por ora, o ministro decidiu apenas liminarmente sobre o ponto da cobrança, deixando a análise sobre a privatização deste serviço público para o julgamento de mérito pelo plenário da Corte.
Concessionárias destacam investimentos em obras e manutenção
A Cortel SP, uma das concessionárias, disse que não iria comentar o relatório do TCM, pois não teve acesso ao documento. Diz ainda ter investido R$ 50 milhões em manutenção, zeladoria e reformas. A Consolare afirma seguir as normas ambientais e autorizações junto aos órgãos competentes.
Já a Velar SP afirmou que a vistoria não aponta despojos humanos ou restos mortais, como ossos, em unidades sob sua gestão. O Grupo Maya informou que vai apurar os casos para tomar as providências necessárias.
A Consolare afirma que “foram realizadas as exumações de todos os despojos identificados que estavam no local e os mesmos foram devidamente documentados e armazenados em ossários”.
A concessionária acrescenta que já foram construídas mais de 11 mil gavetas de concreto no Cemitério da Vila Formosa, além de outras melhorias e obras que somam um investimento de mais de R$ 19 milhões.
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