SÃO PAULO – Sob vento forte e garoa gelada, uma equipe de 12 funcionários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) chegou na manhã desta quarta-feira, 10, à aldeia Tekoá Itakupé, aos pés do Pico do Jaraguá, na zona norte de São Paulo, dividida em três carros. A recenseadora Layla Cardoso, de 33 anos, saiu de um deles e, após andar sobre um chão irregular e rodeado por lama, chegou ao centro cultural da aldeia.
Lá, foi recebida pela líder indígena Tamikuã Txihi, de 38 anos, que usava um cocar e uma calça com estampa do Batman – com cerca de 90 moradores, a aldeia fica a apenas 40 minutos de carro do centro da capital e é ocupada principalmente por representantes dos povos guarani. Foi o pontapé inicial em São Paulo do Censo Demográfico das terras indígenas, que na edição deste ano tenta mapear as línguas e etnias da população originária.
“Estar com representantes do IBGE respondendo a esse questionário, falando do nosso modo de vida, de como nós estamos vivendo e também da nossa luta, é um símbolo de resistência”, disse ao Estadão Tamikuã Txihi, uma das três lideranças indígenas de Tekoá Itakupé. Ao todo, explica, seis aldeias compõem a região do Jaraguá, tida por historiadores como o local em que se estabeleceu a primeira mina de metais preciosos do País.
Diante disso, a resposta ao Censo pelos povos indígenas que vivem no local, explica Tamikuã, é carregada de simbolismo. “Tempos atrás, os povos indígenas eram tutelados, tinham sempre o que falar pelos povos indígenas. Agora, nós estamos aqui falando da importância dos povos indígenas para que todo mundo veja”, afirmou ela, ressaltando as tradições mantidas por moradores da aldeia. Além do português, ao menos duas línguas são faladas pelos povos indígenas do Jaraguá: o guarani, principalmente, e o tupi, por algumas famílias.
O artista plástico Daniel Werá Poty, de 37 anos, foi um dos que acompanharam a visita dos recenseadores durante esta quarta. “O Censo é importante para a gente compartilhar com a população, com a sociedade, a importância de nós, como comunidade, termos os nossos direitos, buscarmos esse equilíbrio de se viver em harmonia com a natureza, mas não deixando de lado os direitos que toda a sociedade tem”, disse. Morador de Tekoá Itakupé, ele cobra melhorias de energia elétrica e saneamento básico na região.
As estimativas indicam que cerca de 900 pessoas residem nas seis aldeias espalhadas pelo Jaraguá, que são consideradas de fácil acesso pela proximidade das bases do IBGE e pelo diálogo com os representantes dos povos tradicionais. Nos próximos dias, o Censo da população será destinado não só a lideranças, como a outros moradores da comunidade, a exemplo de Daniel. Avançará também por cada vez mais aldeias do País, o que possibilitará a coleta de dados dos povos originários e, posteriormente, o planejamento de políticas públicas.
Conforme Luciano Duarte, responsável pelo projeto técnico do Censo Demográfico, os questionários direcionados à população indígena possuem algumas melhorias para aplicação neste ano. O objetivo é abarcar as diversidades encontradas nas aldeias pelo País e aumentar a efetividade das perguntas. “A gente tem um questionário para as lideranças buscando entender algumas características de cada aldeia, de cada comunidade indígena”, explicou ele, referindo-se às perguntas direcionadas a Tamikuã nesta quarta.
“E temos algumas perguntas no questionário que são específicas para as pessoas que se declaram indígenas ou aquelas que residem dentro de área indígena”, continuou. Neste último caso, todas as pessoas que moram em comunidades indígenas e/ou se autodeclaram como indígenas são afetadas.
“Além das perguntas estruturais dos questionários, que são sexo, idade e características básicas, a gente agora tem essas perguntas específicas, que abordam língua falada e a etnia dessas populações”, disse Duarte, que ressaltou que uma das novidades deste ano é que os respondentes indígenas podem assinalar até três opções de língua falada. “É um detalhamento mais rebuscado em relação ao que foi feito no Censo de 2010.”
Para possibilitar essa abordagem, o responsável técnico pelo Censo explica que, além de estudos sobre as comunidades indígenas conduzidos de forma prévia, neste ano cerca de 10% dos cerca de 183 mil recenseadores passaram por um dia inteiro de treinamentos específicos. Na edição de 2010, isso não ocorreu – foi divulgada apenas uma cartilha para abordagem dos povos originários. Também não foi feita distinção de comunidades quilombolas, outra novidade para este ano.
“É um momento simbólico, importante para a construção da realidade dessa população no País”, explicou Duarte, que disse que os prazos para conclusão das visitas dependem das complexidades encontradas nas aldeias. A expectativa, ainda assim, é consolidar os dados ao longo do próximo ano. “A ideia é não somente contar os indígenas, mas já caracterizar toda a população em território nacional.”
Segundo a geógrafa Daiane Ciriáco, que faz parte do grupo de trabalho de povos e comunidades tradicionais do IBGE, um ponto importante é que no Censo destinado à população indígena neste ano há adaptações na forma como as perguntas são feitas. Como exemplo, cita uma alteração no conceito de domicílio.
“A diversidade dos grupos indígenas é muito grande e o conceito de domicílio do IBGE, que deve ter parede, por exemplo, para se considerar um domicílio fora das áreas indígenas, dentro de terras indígenas, isso pode não fazer sentido. Então, nas áreas indígenas a gente considera o domicílio mesmo que não tenha parede. É uma adaptação do questionário”, explicou a geógrafa.
Outra diferença está na pergunta sobre religião. “Em outros lugares a pergunta é 'Qual é sua religião ou culto?'. Nas áreas indígenas, a pergunta é: 'Qual é o seu culto, ritual indígena ou religião?'. Porque a gente entende que, a partir dessa pergunta, eles tendem a declarar suas religiões tradicionais", disse ainda. "Muitas vezes, o entendimento do que é religiosidade é diferente nesses grupos."
Para o Censo da população indígena deste ano, além de um mapeamento das condições de vida nas aldeias feito a partir de 2016, foram firmados acordos de cooperação técnica com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Como uma das novidades, criou-se uma “sala de situação” permanente, novidade permitirá a atualização contínua da avaliação de segurança nas áreas de conflito.
O IBGE estima que no Brasil existiam 7.103 localidades indígenas e 5.972 localidades quilombolas em 2019, de acordo com projeção feita a partir da Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas do Censo 2010. O levantamento mostra também que do último censo até as estimativas de 2019, o número de localidades indígenas deu um salto de 1.856 para 7.103.
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