O volume de chuva no litoral norte de São Paulo no carnaval chamou a atenção pela quantidade extraordinária de precipitação: entre o sábado, 18, e o domingo, 19, mais de 600 milímetros recaíram sobre a região – principalmente em São Sebastião, município mais afetado. A tragédia deixou 65 mortos e as buscas continuam.
Se a precipitação tivesse ocorrido nesta intensidade por toda cidade, o acumulado seria suficiente para preencher até a borda 101 mil piscinas olímpicas, aproximadamente. O Estadão mapeou dados de chuva e deslizamento na cidade para dar dimensão da tragédia e reúne, em visualização, a rota do desastre.
Por lá, a dinâmica dos principais eventos da tragédia segue uma cronologia que se inicia 24 horas antes dos primeiros sinais de chuva forte. Os detalhes estão a seguir, em linha de tempo que cobre o intervalo entre a sexta, 17, e o domingo, dia que ocorreram os deslizamentos de terra e o maior volume de chuvas, especialmente na Barra do Sahy.
Antes de tudo, é necessária uma contextualização. Na meteorologia, um milímetro equivale a um litro de água por metro quadrado. Quem quantifica o volume é uma ferramenta chamada pluviômetro.
Foi com base nesta leitura que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) apontou o acumulado médio de chuva para todo o mês de fevereiro nas proximidades da Barra da Una. Por lá, o quantitativo mensal é de 305 mm; significa dizer que ao longo de um mês, 305 litros de água se acumularam em um metro quadrado no local (mas a chuva, claro, não se distribui uniformemente pela cidade).
Além disso, é preciso lembrar que o temporal, somente, não deve ser visto como causador principal das enxurradas e da tragédia: há fatores geológicos e urbanos que influenciam deslocamentos de massa.
É possível perceber a proximidade das concentrações de chuva com áreas suscetíveis a deslizamentos, conforme a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). Em painel, o serviço geológico ligado ao governo federal, classifica a possibilidade de escoamento de terra em três níveis, que variam de baixo a alto.
No mapa a seguir, quanto mais escura a mancha, maior a probabilidade de movimentação de massa.
A magnitude da tragédia fica mais evidente ao olhar para os números diários. Ainda na Barra da Una, em um intervalo de 24h, 638 litros se ] a mesma porção de território, o equivalente a 638 mm.
Em São Sebastião, 12 das 18 estações disponíveis são monitoradas para entender a precipitação: dois leitores no Juquehy, além de um ponto nas regiões Barra do Una, Boiçucanga, Enseada, Itatinga, Jaraguá, Morro do Abrigo, Pontal da Cruz, Praia das Cigarras, Praia Grande e Toque Toque Pequeno.
Em uma das estações pluviométricas de Juquehy, a mais próxima do epicentro da tragédia, foi registrada precipitação de 528mm, quase o dobro do esperado para fevereiro, com média histórica de 331 mm, o equivalente a 11,8 mm para um dia.
Outras estações próximas, como Barra da Una e a segunda estação Juquehy (Juquehy 2), calcularam elevado volume de chuvas no dia dos deslizamentos, muito acima da média mensal, com precipitação, em apenas 24 horas, de 633mm e 584mm, respectivamente.
Como é calculado o volume de chuva?
O pluviômetro é adotado por diversos órgãos de acompanhamento meteorológico, que servem como referência para o monitoramento da Defesa Civil de São Paulo. Além do Cemaden, também são considerados regionalmente os leitores do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Centro integrado de informações agrometeorológicas (CIIAGRO) e pontos de leituras das Defesas Civis municipais.
Um exemplo comum de medição de precipitação pluviométrica é a informação de que ocorreu uma precipitação de 100 mm em uma determinada região.
Convertendo para centímetros, uma chuva com 100 mm de acúmulo ocuparia 10 cm de altura, aproximadamente ao tamanho de um cartão de crédito na vertical. Como cada milímetro de chuva equivale a um litro de água, significa que uma precipitação de 100mm resultaria em 100 litros de água por metro quadrado.
Chuvas do dia 19 foram 78 vezes maiores do que o esperado
Nas imagens a seguir mostramos o comparativo do volume de chuva em um dia normal, levando em conta a média diária para fevereiro, em São Sebastião, e o volume de chuvas registrado nas 24 horas da tragédia no município, entre os dias 18 e 19.
A proximidade com o oceano coloca a faixa litorânea brasileira como a porção mais vulnerável a chuvas extremas, como a do carnaval. A explicação está ligada às variações climáticas. Os oceanos são os mais afetados pelo aquecimento global, diz Pedro Camarinha, pesquisador do Cemaden e especialista em mudanças climáticas e desastres.
“Não podemos mais ficar contando somente com essas chuvas que já conhecemos. Precisamos atualizar nossas bases de dados e também começar a implementar as tecnologias as projeções do clima-futuro para os próximos anos”
Pedro Camarinha, pesquisador do Cemaden e especialista em mudanças climáticas e desastres.
O “esquentar” da costa favorece a formação de frentes frias – fenômeno por trás do ocorrido no litoral norte. “Esse calor adicional serve de combustível para essas tempestades mais severas”, diz Camarinha. É por essa nova dinâmica, consequência das mudanças climáticas, que prever fenômenos como esse se torna uma missão menos precisa. Os modelos até o presente consideram as dinâmicas anteriores, com poucos episódios fora do comum. “Não tem histórico suficiente.”
Apesar de ser difícil adiantar outros eventos de chuva de grande proporção, a pesquisa brasileira já consegue localizar os litorais da região Sul e Sudeste como as áreas com maior probabilidade de volumes extremos.
“O Sul é a região por onde passam mais frentes frias e próximo de onde se formam os ciclones. O Sudeste recebe boa parte destes eventos também, e muita umidade que vem da Amazônia”, explica.
Em alerta
Para São Sebastião, a última atualização de suscetibilidade de deslizamentos foi em 2019. O CPRM salienta, no painel, que podem existir áreas sujeitas adesastres em municípios e locais ainda não mapeados pelo serviço geológico.
Impacto da tragédia
O Estadão teve acesso a imagens de satélite que comparam o antes e o depois da tempestade. As manchas marrons sinalizam os locais de deslizamento de terra. Deslize a barra vertical para esquerda e direita para comparar os dois momentos.
Os registros foram feitos nos dias 10 e 25 de fevereiro pelo satélite Sentinel-2, do programa Copernicus da Agência Espacial Europeia (ESA), direcionado ao monitoramento de vegetação, solos e áreas costeiras.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.