Como as obras da Cidade Matarazzo alteraram rotina de vizinhos? ‘Não consigo mais abrir a janela’

Megacomplexo localizado a uma quadra da Avenida Paulista tem provocado transtornos aos moradores do entorno; responsáveis pelo empreendimento afirmam adotar medidas para garantir uma convivência harmoniosa com residentes da região

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Foto do author Ítalo Lo Re

Ao longo dos últimos anos, moradores vizinhos da Cidade Matarazzo, megacomplexo de luxo que vem sendo paulatinamente aberto ao público a uma quadra da Avenida Paulista, na Bela Vista, tiveram de mudar a rotina para conviver com os transtornos gerados pelas obras do empreendimento. Alguns deles relatam que têm tido dificuldade de fazer home office, devido ao barulho, e até para entrar de carro na garagem dos prédios, por causa de caminhões parados em frente aos portões.

Em nota, a Cidade Matarazzo afirmou que adotou medidas para garantir uma convivência harmoniosa com a vizinhança. Já o Rosewood Hotel diz estar comprometido em atender prontamente a qualquer questão levantada pelos moradores quando acionado. A Soho House alega ter medidas para controle de ruídos, como a utilização de medidor de decibéis. A Prefeitura, por sua vez, diz que uma vistoria foi feita no local e não houve a constatação da presença de entulhos. O plano da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) inclui entre as medidas de mitigação previstas uma doca interna para carga e descarga na Cidade Matarazzo (leia mais abaixo).

A professora universitária Lucília Siqueira mora no 18º andar e diz que, por causa do barulho, prefere muitas vezes trabalhar em outros locais fora de casa. Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

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Com o empreendimento próximo de ser finalizado por completo, o temor de alguns vizinhos é que festas e outros eventos em espaços já inaugurados, como o Hotel Rosewood e a Soho House, continuem gerando incômodos – alguns episódios desse tipo já têm sido alvo de críticas. A alteração da dinâmica de algumas ruas também tem gerado insatisfação.

Como mostrou o Estadão, moradores de um prédio na Alameda Rio Claro chegaram a fixar um cartaz na fachada pedindo por silêncio e trânsito livre na região – nessa via, por exemplo, apenas uma das faixas está liberada para acesso aos prédios, o que muitas vezes dificulta a movimentação de quem reside por ali. Em paralelo, um grupo de síndicos dessa mesma rua criou uma associação há alguns anos para dialogar com os responsáveis pelo empreendimento.

“Chega de desrespeito à vida dos vizinhos. Chega de barulho do gerador noite e dia. Chega do alto som das festas internas. Chega de música alta. Chega de bloqueio ao acesso às nossas moradias.” Esses foram os pedidos listados na placa feita por moradores no começo do mês na fachada do Edifício Santa Luzia, localizado na Alameda Rio Claro.

Após a fixação do cartaz, representantes da Cidade Matarazzo pediram a retirada da placa em até 24 horas, “sob direito de adotar as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis”. No começo desta semana, a manifestação foi removida da fachada do prédio.

Os autores do protesto foram localizados pela reportagem, mas preferiram não revelar as identidades. O Estadão conversou com moradores de diferentes prédios na região. A maioria demonstrou insatisfação em relação aos impactos das obras e à nova rotina na região. Há casos de pessoas que têm tido inclusive dificuldade de sair de casa de carro.

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Cartaz feito por vizinhos pede silêncio e trânsito livre na região. Foto: Arquivo pessoal

“Não consigo mais abrir a janela”, diz a historiadora e professora universitária Lucília S. Siqueira, de 58 anos, por conta dos ruídos das obras. Em alguns momentos do dia, relata, o barulho é tamanho que ela prefere trabalhar em outros locais. Assim, evita ser interrompida durante reuniões virtuais em casa, antes mais comuns em sua rotina. “Isso mesmo sendo moradora do 18º andar.”

Para quando fica em casa, a solução foi instalar um ar condicionado para não ter de abrir as janelas nem de noite: em alguns horários, é difícil até assistir à TV por causa de barulhos de festas no empreendimento, relata. Diante dos transtornos, alguns vizinhos também optaram pela instalação de janelas antirruído.

“É uma pena que um projeto como este não esteja respeitando a rotina de moradores do entorno”, diz Lucília. Favorável a uma revitalização do espaço no início, a historiadora critica também o que define como um apagamento da história do antigo Hospital Umberto I, que ocupou o prédio anteriormente e ficou marcado na vida de muitos paulistanos.

Entre as dificuldades relatadas pelos moradores está entrar nas garagens dos prédios. Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

‘Só quero minha rua de volta’

Moradores da região ouvidos pelo Estadão reclamam ainda que a rotina do entorno que tinham anteriormente não vem sendo preservada como gostariam. Uma feira livre que ocorria na Alameda Rio Claro aos sábados, por exemplo, foi transferida para outra rua. Além disso, a via, antes de mão dupla, passou a ser de mão única – agora os carros só vão no sentido Rua Pamplona.

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“Tem vezes que demoramos 15 minutos só para contornar o quarteirão de carro”, diz o artista plástico Alex Flemming, de 70 anos. Hoje em obras, a Rio Claro ainda está com apenas uma faixa disponível para carros, o que dificultou o desembarque de pessoas. Em alguns casos, até a entrada de moradores nas garagens dos prédios tem sido comprometida.

A previsão é de que a alameda abrigue um espaço gastronômico, com eventos em alguns momentos do ano. Muitos moradores, no entanto, não concordam com essa reconfiguração de uma via que também possui prédios residenciais. “Só quero minha rua de volta”, afirma Alex. “Imagine se algum empreendimento seria capaz, por exemplo, de alterar toda uma rua na França.”

O economista Lucas Avelleda, de 31 anos, é um dos moradores que relatam que viam a iniciativa com bons olhos no começo, mas foram mudando de percepção. “Quando vieram com esse projeto, que chamavam de revolução urbana, eu fui um forte apoiador. Teve bastante gente que era contra, mas eu vi como um projeto que traria melhorias”, diz.

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Segundo ele, desde que o empreendimento começou a receber os primeiros eventos e passou a fazer intervenções na Alameda Rio Claro, uma nova rotina se estabeleceu. “Eles estão entendendo que a rua é um ativo deles, então param o caminhão na frente da garagem do prédio quando bem entendem, seja no horário comercial ou à noite”, diz Lucas. Ele relatou que, em agosto, uma tela chegou a ser instalada na frente do prédio, impedindo a saída de carros, e só foi retirada após pedidos de moradores.

Tela colocada em frente a saída de garagem na Alameda Rio Claro. Foto: Lucas Avelleda

Alameda teria virado ‘estacionamento particular’, reclama morador

“Meu receio é que a rua vire um estacionamento de carga e descarga mesmo depois das obras”, afirma o economista. “E o que me deixa mais preocupado é eles estarem tomando um bem público, que é a rua, e tratando como um bem privado, como um estacionamento particular.”

Lucas relata que, por vezes, fornecedores de eventos do prédio param caminhões até mesmo no meio da rua, gerando trânsito. A prática estabeleceu uma rotina de ‘buzinaços’ na rua. “Às vezes acho que está acontecendo um crime na rua, mas são os moradores, impacientes e com razão, que começam a buzinar porque o trânsito está parado, sem eles conseguirem sair de casa”, acrescenta. Pilhas de entulhos depositadas nas vias também costumam ser alvos de reclamação.

Entulhos jogados ao lado da Cidade Matarazzo. Foto: Lucas Avelleda

Dificuldade para pegar carro de aplicativo

Usuário frequente de táxi e transportes por aplicativo, o economista relata ainda que, com as obras, quase não é mais possível solicitar corridas informando o endereço de casa. “Ando duas quadras, porque sei que tem um risco tremendo de eles bloquearem a rua e eu ficar parado dentro do táxi por 10, 15 minutos”, diz Lucas.

A volta, afirma, costuma ser até mais dramática. “Sempre gostei de desembarcar na frente da minha casa por questão de segurança, mas isso mudou completamente minha rotina. Mesmo quando tem chuva, às vezes caminho até uns 10 minutos do táxi até em casa”, acrescenta o economista.

Alameda Rio Claro, antes de mão dupla, passou a ser de mão única – agora os carros só vão no sentido Rua Pamplona. Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Há moradores que, mesmo com os transtornos gerados pela obra, são otimistas em relação ao empreendimento. “Está havendo um transtorno que toda obra traz: muita poeira e barulho”, afirma o aposentado Francisco Alvarez Filho, de 62 anos. “Mas, de alguma forma, as pessoas do empreendimento sempre ouviram um pouco nossas reclamações, porque paliativamente era um jeito de ir contornando (transtornos).”

Segundo ele, as obras tiveram um momento inicial mais interno e começaram a ganhar força pouco antes da pandemia, com alguns episódios que incomodaram mais, como a descarga de materiais em período noturno e o barulho de geradores. “Mas, temos de levar em consideração que é um projeto muito complexo, inclusive com construção ‘para baixo’”, diz. Em uma das fases, a capela chegou a ficar suspensa.

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Capela chegou a ficar suspensa em uma das fases de construção do empreendimento. Foto: NILTON FUKUDA/ESTADÃO - 12/09/2019

“Eu moro nessa rua, em parte, por conta de tudo que ela representa. Estudei Arquitetura, então, do ponto de vista urbanístico, isso sempre foi um diferencial para a gente”, diz o aposentado. Francisco afirma que, mesmo com a proximidade com a Avenida Paulista, o local sempre foi relativamente tranquilo, e a perspectiva dele é que continue assim.

Em 2021, alguns síndicos da região fundaram a Associação Pró Rio Claro, que, entre outros objetivos, busca ter voz ativa junto aos representantes do empreendimento. “Durante a inauguração do hotel a gente teve também problemas de festas que iam até de noite. Isso gerou reclamação, mas depois começaram a encerrar as atividades externas às 23h”, afirma a arquiteta Silvania Lamas, de 68 anos, presidente da entidade.

“Tem coisas a melhorar, tem coisas que eles precisam atender aos moradores, mas seria injusto dizer que nada foi feito, que abusam. Isso não é verdade, porque nós nunca fizemos um pedido que não fosse respondido ou pelo menos considerado”, acrescenta. Compõem a associação um total de sete síndicos, que representam prédios residenciais que, juntos, abrigam pouco mais de 200 moradores.

“O pessoal mais antigo daqui se acostumou a viver no silêncio, e esse silêncio total não vai voltar. Mas, querendo ou não, as coisas estão melhorando”, diz Silvania.

Ela afirma que acredita que a região vai se tornar mais segura com o Cidade Matarazzo, por exemplo. “Onde era a Alameda das Flores ninguém passava mais, os moradores não passavam mais ali. Não tinha mais condição: era passar e ser assaltado. A gente espera que isso não retorne.”

O que diz a Cidade Matarazzo

Em nota, a Cidade Matarazzo, representada pela BM Varejo Empreendimentos SA, afirmou que, em conjunto com seus parceiros, adotou medidas importantes para garantir uma convivência segura e harmoniosa com a vizinhança desde o início de suas atividades. “Destacam-se a mudança de endereço dos geradores, a interrupção das obras em horários específicos para facilitar o fluxo nas vias de acesso e a implementação de regras para atividades noturnas e minimização de ruídos”, disse.

A Cidade Matarazzo afirma também que, junto a moradores da região e com a Associação São Paulo Capital da Diversidade, entidade sem fins lucrativos, “mantém um canal de diálogo aberto e ativo, com reuniões regulares para discutir temas de interesse e contato direto com representantes da Associação Pró Rio Claro”.

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“Gostaríamos ainda de reafirmar que não há atraso nos prazos contratuais das obras viárias, que estão sendo realizadas conforme a legislação e como contrapartidas estabelecidas pela Certidão de Diretrizes e Prefeitura de São Paulo. Continuaremos à disposição para dialogar e minimizar os transtornos na região”, afirma.

Já o Rosewood São Paulo afirmou que se preocupa com o bem-estar da comunidade local e se solidariza com os possíveis danos causados à vizinhança. “Reconhecemos a importância de manter um ambiente harmonioso para todos que convivem ao nosso redor”, diz o hotel.

“Diante das queixas, o Rosewood São Paulo esclarece que todas as obras do empreendimento já foram concluídas e os reparos do entorno no bairro não são de responsabilidade do Rosewood São Paulo. Assim como, carga e descarga de materiais para eventos são feitas exclusivamente em nossas docas, localizadas na Rua Itapeva, número 435″, diz.

Sobre queixas de ruídos de eventos, o Rosewood afirmou que faz o monitoramento e está comprometido em atender prontamente a qualquer questão levantada pelos moradores quando acionado. “Entendemos que a chegada do Rosewood São Paulo trouxe uma nova dinâmica para a região. Um espaço que foi revitalizado e ganhou vida, valorizando o bairro e proporcionando benefícios econômicos e sociais, como a criação de empregos e a revitalização de áreas de lazer e convivência”, acrescenta.

A Soho House São Paulo afirmou que se preocupa com o bem-estar de seus membros e também com a comunidade local. “Desde que inauguramos e demos início à nossa agenda cultural de eventos, contamos com medidas para controle de ruídos, como a utilização de medidor de decibéis”, afirmou. “Permaneceremos atentos para minimizar possíveis transtornos.”

Como a Prefeitura acompanha a situação

A Prefeitura de São Paulo afirmou, por meio da Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), que prevê uma ação de fiscalização. “Uma vistoria foi feita no local e não houve a constatação da presença de entulhos, segundo a SMSUB, por meio da da Secretaria Executiva de Limpeza Urbana”, afirmou.

Já a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) disse que o empreendimento foi objeto de estudo pela área de Pólos Geradores da CET, resultando na Certidão de Diretrizes SMT 011/23. “Dentre as medidas de mitigação previstas, está uma doca interna para carga e descarga com capacidade para quatro vagas de utilitários e seis vagas para caminhão em atendimento à legislação, com acesso pela Rua Itapeva”, afirmou.

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“A CET aguarda a apresentação, pelo empreendedor, do projeto de urbanização aprovado pela SPObras e CPPU (Comissão de Proteção da Paisagem Urbana), para prosseguimento do processo de execução das medidas de mitigação sob responsabilidade do empreendedor. O prazo para o cumprimento das medidas mitigadoras estipuladas na Certidão de Diretrizes é de 240 dias após a apresentação das autorizações dos órgãos envolvidos”, acrescenta.

A Prefeitura destacou que a obra na Alameda Rio Claro se refere à construção de um boulevard na região e, quando terminar, essa via terá mão única em direção à Rua Pamplona. “Para chegar à Av. Paulista, os motoristas terão como opção a Rua Pamplona. Para atingir a Rua Rocha, a alternativa será utilizar a Rua Itapeva”, finalizou a gestão municipal.

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