Um livro de gravuras brasileiras desenhadas à mão entre os anos de 1834 e 1835 foi recuperado neste mês pela Polícia Federal com um colecionador carioca que havia adquirido legalmente a obra junto a uma casa de leilões de Londres. A obra passa por perícia e será devolvida à Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, de onde havia sido furtada com outros livros e gravuras de grande raridade em 2006.
Furtos de obras raras têm sido recorrentes em bibliotecas e museus brasileiros, causando grande prejuízo cultural ao País.
O livro Souvenirs de Rio de Janeiro, ilustrado por Johann Jacob Steinmann, desenhista, litógrafo e pintor de paisagens suíço, foi recuperado 18 anos após o furto graças a essa cooperação internacional entre polícias e órgãos diplomáticos.
Foi necessário mobilizar a Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, para rastrear a obra e verificar as circunstâncias do leilão que a vendeu na capital inglesa. Ficou evidenciado que o adquirente brasileiro agiu de boa fé.
Entre os cenários retratados pelo pintor suíço, estão paisagens dos bairros cariocas de Santa Tereza e Botafogo, a Praia Vermelha e a cidade de Nova Friburgo.
A Prefeitura informou que a Secretaria Municipal de Cultura ainda aguarda o contato da PF para preparar o reingresso do livro no acervo da Biblioteca Mário de Andrade.
O furto foi em 2006, no setor de obras raras que ficava nos fundos da biblioteca, na Rua da Consolação, no centro da capital. Na época, a Prefeitura disse que a ação criminosa aconteceu ao longo de meses para que o desfalque no acervo não fosse notado.
Dois anos depois, a administração da biblioteca divulgou a relação de bens furtados: 42 gravuras do pintor Jean-Baptiste Debret, 58 ilustrações de Johann Moritz Rugendas, três litografias de Burmeister, e o livro de Steinmann, todos dos séculos 18 e 19. Havia sumido também um livro de orações, impresso em pergaminhos, de 1501.
De acordo com a PF, a investigação que levou à identificação do autor dos crimes foi feita pela Polícia Civil de São Paulo. Em 2007, o então diretor da biblioteca pediu apoio à PF para a inclusão das imagens, não apenas desse livro, mas de todos os demais itens subtraídos, na base de dados de objetos de arte furtados ou roubados da Interpol, disponível nos 196 países que integram a organização internacional de polícia.
“A partir dessa inclusão é que foi verificado que a obra havia sido leiloada na Inglaterra. A casa de leilões colaborou com as autoridades inglesas, com o adido da PF em Londres e com o Núcleo de Cooperação Internacional da PF em São Paulo para que o comprador fosse identificado e a obra recuperada”, afirmou a PF em nota. Tanto a casa de leilões quanto o detentor da obra, que não teve o nome divulgado, colaboraram com as investigações.
Acervo em cofre e portas camufladas
O furto de livros raros cresceu no Brasil nos últimos anos e mudou a rotina de grandes bibliotecas nacionais. Ao menos 7.650 livros raros, gravuras e documentos históricos foram levados de museus e bibliotecas do País entre 2003 e 2017, segundo pesquisa da Universidade Federal do Pará (UFPA). Destes, menos de 10% foram recuperados.
Em 13 anos, no período de 2007 e 2019, foram registrados 1.084 inquéritos na PF ligados ao tráfico ilícito de livros e bens culturais, média de 83,3 por ano, segundo a Interpol.
O Brasil está em 26.º lugar entre os alvos do comércio ilícito de bens culturais que chega a movimentar até US$ 15 bilhões por ano no mundo, segundo estudo publicado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
A sequência de furtos levou a Fundação Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura, a recomendar medidas como a digitalização do acervo e câmeras de segurança. Na própria FBN, servidores, pesquisadores e visitantes têm bolsas e volumes revistados.
Na Biblioteca Mário de Andrade, mantida pela Prefeitura de São Paulo, o acesso às obras é restrito a funcionários do setor e para consultar o acervo é necessário agendamento prévio, com justificativa do motivo da pesquisa. Além disso, para que qualquer item saia das instalações da biblioteca – para exibições, por exemplo – é necessária aprovação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O que notamos é que, quando o furto é feito, já há uma encomenda das pessoas que querem aquele material.
Beatriz Kushnir, historiadora
No Museu Goeldi, de Belém, o acervo está trancado em uma sala-cofre com porta camuflada. Foram instalados equipamentos de identificação digital que permitem o acesso à biblioteca somente de pessoas autorizadas.
Um sistema de captação de imagens monitora continuamente a sala-cofre com vídeo de vigilância em tempo real de todas as atividades dentro e nas proximidades. Há ainda uma porta de camuflagem “projetada para ser discreta e integrada ao ambiente”, segundo o Goeldi.
O cofre tem sistema de refrigeração que mantém a temperatura controlada, essencial para preservar materiais sensíveis. Recentemente foi instalado um sistema de combate a incêndios e de proteção contra possíveis sinistros que possam comprometer a integridade das obras.
A coleção de obras raras da instituição possui um conjunto de 4 milhões de itens tombados, entre eles 4 mil obras raras publicadas entre os séculos 16 e 20. Desde 2008, conforme o museu, não ocorreram novos furtos.
Conforme a pesquisa da UFPA, no período pesquisado, foram noticiados pela mídia 24 furtos ou roubos em 22 instituições públicas brasileiras. Em apenas um dos casos, o roubo ao Instituto de Botânica de São Paulo, em 2012, todos os 22 itens foram recuperados. Em outros dois, nenhum dos bens foi recuperado.
Outros resgastes
Em 1.º de maio deste ano, a PF recuperou em Londres um livro raro que havia sido furtado em 2008 do Museu Emílio Goeldi. Como no caso da obra de São Paulo, a Scotland Yard colaborou com o resgate. O livro, de 1823, do naturalista alemão Johann Baptist von Spix, traz desenhos de plantas e animais brasileiros.
Em março deste ano, foi resgatada também em Londres uma obra do naturalista holandês de Guilherme Piso, datada de 1658, levada do acervo do Goeldi. Em dezembro de 2023, foi recuperado um livro de 1836 do zoólogo alemão Eduard Poeppig, da mesma instituição, que constava na lista da Interpol de bens culturais roubados e foi localizado na Argentina.
No furto do Museu Goeldi, foram levados 40 in-fólios e 20 livros da coleção de obras raras da Biblioteca Ferreira Penna, a mais antiga instituição científica da Amazônia, fundada em 1866. O furto foi constatado em 17 de dezembro de 2008, durante treinamento realizado por uma das servidoras da biblioteca com uma bolsista que desenvolvia pesquisas na coleção.
Durante o expediente, foi detectada a ausência de vários livros do acervo, sendo que de algumas obras foram encontradas apenas as capas, mantidas nas estantes para que o sumiço não fosse percebido.
Na época, três servidores do museu foram denunciados por peculato criminoso, mas o suposto crime prescreveu antes do julgamento.
Algumas das obras raras do Goeldi são as edições furtadas em 2008, e recuperadas em 2014, pela PF brasileira. O in-fólio Rerum Medicarum Novae Hispaniae, escrito em latim pelo médico e botânico espanhol Francisco Hernandez, em 1628, foi avaliado em US$ 200 mil (cerca de R$ 1,1 milhão).
De acordo com o Museu Goeldi, a publicação foi encontrada em Nova York por um livreiro que comprava obras raras e desconfiou quando foi oferecida a publicação. O especialista da Galeria Swan (NY) examinou a obra e entrou em contato com as autoridades brasileiras.
Elas tomaram as medidas legais para restituir o patrimônio ao museu, um mês depois de sua localização. Depois do furto de 2008, as obras raras da coleção do Goeldi passaram a ser mantidas em um cofre.
Período de grandes ataques
Os grandes furtos entre 2003 a 2017 aconteceram em bibliotecas e arquivos públicos e foram estudados pelos pesquisadores Inaiê del Castillo Andrade Neves, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Nelson Rodrigues Sanjad, tecnologista sênior do Museu Goeldi.
Em 2003, do Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio, foram furtados mais de 2.500 periódicos e livros. No ano seguinte, mais de 2.500 periódicos, gravuras e cartões postais históricos do Arquivo Geral da Cidade do Rio. Em 2015, o Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, teve furtados mais de 100 documentos dos séculos 17 ao 19.
Da biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2016, os ladrões levaram 423 livros raros e antigos. Entre as obras estavam 16 volumes da primeira edição dos Sermões de padre Antônio Vieira, de 1610, e quase toda a coleção Brasiliana, composta por livros de viajantes europeus que registraram flora, fauna e costumes do país do século 17 ao 19. Os ladrões aproveitaram que o prédio passava por reforma e as estantes foram fechadas com bolsas de plástico preto.
Os furtos bibliográficos se caracterizam pela não violência, mas, em 2012, três homens invadiram o Instituto de Botânica em São Paulo se passando por pesquisadores, sacaram armas e renderam sete pessoas para roubar 22 livros raros. Em agosto de 2013, em Campinas, uma quadrilha armada invadiu o Centro de Ciências, Letras e Artes, amarrou e amordaçou voluntários e pesquisadores e roubou cerca de 100 obras, principalmente do acervo doado pela família do presidente Campos Salles.
Um único suspeito, preso em São Paulo em 2019, é apontado pela polícia como suposto autor de furtos de obras raras no Museu Nacional, Palácio do Itamaraty, Jardim Botânico e Biblioteca Nacional, além de outras instituições da Bahia, Pará, Paraná e São Paulo. Ele chegou a estudar biblioteconomia para reconhecer as obras mais valiosas.
Conforme a historiadora Beatriz Kushnir, professora do programa de pós-graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da Uni-Rio, até os anos 1990 os furtos de bens culturais no Brasil eram mais voltados aos objetos de arte sacra e artefatos arqueológicos. A partir dos anos 2000, livros raros e papéis históricos passaram a ganhar evidência.
Para ela, o ano de 2003 representa um marco nessa mudança de perfil em razão do furto de mais de dois mil documentos raros do Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio. “Documentos como aqueles são mais fáceis de transportar e difíceis de rastrear, sendo geralmente comercializados fora do País”, disse.
Entre 2005 e 2020, Beatriz dirigiu o Arquivo Geral da Cidade do Rio e, um ano após sua posse, o local foi furtado por uma quadrilha que atuava na capital fluminense e em outros Estados. “Para entender e solucionar aquele furto, acabei me tornando especialista nesse assunto”, conta. Pouco mais de três anos depois, o suspeito foi preso e a quadrilha, desbaratada.
O problema, segundo ela, é que só parte pequena do que foi furtado acaba voltando para a instituição. “Quando o furto é feito, já há uma encomenda das pessoas que querem aquele material. Por isso, muito menos coisas conseguem voltar. Além disso, há dificuldade do policial federal de entender esse patrimônio.”
A historiadora recorda que, dois anos depois do furto no Arquivo Geral do Rio, o suspeito devolveu pelos Correios vários documentos que tinha furtado. “O furto só acontece porque tem gente que compra e, muitas vezes, os leilões dão nova certidão de nascimento àquelas obras.”
Base de dados internacional
A Interpol mantém uma base de dados de obras de arte roubadas que se tornou uma das principais ferramentas para combater o tráfico de bens culturais. Na quinta-feira, 20, o banco de dados tinha descrições e fotos de mais de 52 mil itens de mais de cem países, entre eles o Brasil.
“É a única base de dados a nível internacional com informações policiais certificadas sobre objetos de arte roubados e desaparecidos. Os países nos enviam informações sobre itens roubados e desaparecidos e nossos especialistas as adicionam ao banco de dados”, disse, em nota.
Somente são processadas as informações fornecidas por entidades autorizadas, como os gabinetes centrais nacionais da Interpol e organizações parceiras, como a Unesco, o Icom (sigla em inglês do Conselho Internacional de Museus) e o Iccrom (Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais). Apenas objetos e documentos totalmente identificáveis são inseridos no banco de dados. Leiloeiros e pessoas interessadas podem ter acesso à base de dados mediante cadastro.
Segurança patrimonial e de acervos
A Fundação Biblioteca Nacional (FBN), vinculada ao Ministério da Cultura, informou que não há protocolo exclusivo de bibliotecas (nacionais ou não) contra furtos de obras raras, mas há procedimentos para maior segurança patrimonial e de acervos, como monitoramento dos espaços com câmeras, inventários regulares, agendamento para consulta de acervos raros e especiais, cadastro de pesquisadores e outras normas.
A fundação ressalta que a digitalização dos acervos permite a consulta digital, preservando o manuseio dos originais apenas para pesquisas onde é absolutamente necessário esse contato direto com a obra. “No caso específico da FBN, temos uma norma de circulação que visa ao controle de acesso à instituição e especialmente às áreas de consulta”, disse.
A norma inclui crachá obrigatório para servidores, pesquisadores e visitantes e revistas a volumes e bolsas. Apenas servidores têm acesso às áreas de guarda do acervo.
O Iphan esclareceu que faz parte da rede de muitos órgãos responsáveis pela prevenção e combate ao tráfico ilícito de bens culturais no Brasil, juntamente com Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Polícia Federal, Receita Federal, Ministério das Relações Exteriores e Advocacia Geral da União e outros órgãos, cada um nas suas competências legais, da forma mais articulada possível.
Uma suspeita de tráfico ilícito de bens culturais ou evasão de patrimônio bibliográfico pode ser comunicada a qualquer órgão dessa rede, que encaminha a denúncia à instância adequada.
Segundo o instituto, isso dependerá das competências em relação aos objetos, à jurisdição da investigação e à existência de investigações ou inquéritos. Muitos casos são tratados diretamente entre a PF e os proprietários dos bens, que são os responsáveis primários por sua gestão.
O órgão federal esclareceu que a Instrução Normativa Iphan 01/2017, que instituiu o Cadastro Nacional de Negociantes de Obras de Arte e Antiguidades, prevê quais negociantes e tipos de bens devem ser inscritos no cadastro.
A Portaria Iphan 80/2017 prevê o procedimento de fiscalização dos negociantes para verificar o cumprimento de suas obrigações no monitoramento do mercado de artes e antiguidades e na prevenção de lavagem de dinheiro no setor, definindo possíveis infrações e sanções administrativas.
A reportagem contatou a Scotland Yard e ainda não teve retorno.
Principais furtos e roubos de acervo bibliográfico em instituições brasileiras de 2003 a 2016:
- 2003 - Arquivo Histórico do Itamaraty – Rio de Janeiro – Mais de 2.500 itens - Mapas, fotografias e gravuras – 11 itens foram recuperados.
- 2004 - Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – Mais de 500 itens – Livros raros – 141 recuperados.
- 2004/05 – Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro – Mais de 1.000 gravuras e fotografias raras – parte recuperada (não contabilizada).
- 2004 – Inst. Histórico e Geográfico – São Paulo – 74 livros raros – Sem informações.
- 2006 – Arquivo Geral da Cidade – Rio de Janeiro – 2.500 gravuras, periódicos, fotos – Pequena parte recuperada.
- 2006 – Biblioteca Mário de Andrade – São Paulo – 104 livros e gravuras raras – 5 livros recuperados.
- 2006 – Biblioteca Pública do Paraná – Curitiba – 120 livros e coleções – Sem informações.
- 2007 – Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro – 250 gravuras dos séculos 17 e 18 – 147 recuperados.
- 2008 – Museu Emílio Goeldi – Belém – 60 livros e in-fólios raros – 3 recuperados.
- 2012 – Instituto de Botânica – São Paulo – 22 livros raros – 22 recuperados.
- 2013 – CCLA – Campinas – Ao menos 11 livros e quadros – Algumas telas recuperadas.
- 2015 – Arquivo Público Mineiro – Belo Horizonte – Mais de 100 documentos dos séculos 17 ao 19 – Cerca de 70 recuperados.
- 2016 – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio – 423 livros raros e antigos – 12 recuperados.
- 2016 – Universidade de São Paulo – São Paulo - Ao menos 11 livros raros e gravuras – Alguns itens recuperados.
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