“E o zoneamento?” Basta passar por um colega de ofício nos corredores da Câmara Municipal de São Paulo que Rodrigo Goulart (PSD) é interpelado sobre a revisão de uma das principais leis urbanísticas da cidade. Antes mesmo do envio do projeto de lei pela gestão Ricardo Nunes (MDB), o vereador foi anunciado como o relator – fazendo uma dobradinha com a função recém-exercida na revisão do Plano Diretor – e já discute mudanças na legislação com pares e organizações variadas.
A depender do texto apresentado pela Prefeitura, as mudanças não serão poucas. Temas como a expansão das áreas que incentivam a construção de prédios sem limite de altura e o limite de emissão de barulho tendem a movimentar o debate público durante a revisão, como há pouco no Plano Diretor. Uma parte da população rechaçou o texto apresentado por Goulart – posteriormente promulgado quase na íntegra por Nunes – e estampou o rosto do relator em cartazes durante protestos e em um muro da Avenida Paulista: “O lucro é deles. O problema é seu”, diziam.
O vereador não se preocupa com essas mobilizações. Ele se orgulha de conhecer líderes de associações de bairros e outros opositores pelo nome e de tê-los recebido em reuniões e audiências públicas. Diz que acatou parte das demandas, embora alguns desses grupos discordem. Em entrevista ao Estadão na quarta-feira, 13, rebateu uma a uma, algumas das principais críticas recebidas, desde a inclusão de pautas do mercado imobiliário no Plano Diretor até a expansão da verticalização na cidade.
Goulart também destacou o papel do Legislativo na elaboração da lei, rechaçando aqueles que tratam os vereadores como meros “despachantes” dos projetos almejados por Nunes, embora seja próximo e participe por vezes de agendas públicas com o prefeito. Ele diz que o texto municipal passará por mudanças significativas ao longo da tramitação e que vai “mais restringir, do que expandir” as áreas voltadas à verticalização na cidade – após ter incluído no Plano Diretor um trecho que permite essa ampliação para quase o dobro dos locais hoje em vigor.
Médico veterinário de formação e mais conhecido até meses atrás por pautas da causa animal, do setor de restaurantes e do “sul da zona sul”, o vereador diz ter estudado o tema à fundo neste segundo mandato na Câmara, especialmente após assumir a relatoria do Plano Diretor. Até brinca que somente lhe falta o diploma de arquiteto e urbanista e critica parte dos “istas” que discordaram das mudanças que propôs na mais importante lei urbanística paulistana. “Alguns dos que se dizem técnicos fazem contribuições que não são as mais adequadas para a cidade”, afirma.
Herdeiro político do deputado federal Goulart (PSD), o vereador cita o genitor para refutar críticas por não ter formação em uma área ligada a temas urbanos. “O meu pai costuma dizer que a melhor formação é o umbigo no balcão, é a prática. É isso que a gente tem feito aqui.”
Também rechaça acusações de que teria envolvido interesses pessoais na revisão do Plano Diretor, como o polêmico trecho que dava isenção de impostos a estádios – posteriormente retirado do projeto – e a inclusão de parte das demandas do mercado imobiliário no texto. “A vontade popular e legislativa prevaleceram na revisão do Plano Diretor”, garante.
Com dois restaurantes em Pinheiros, comenta que também vive as consequências do avanço da verticalização em bairros paulistanos valorizados. Ao mesmo tempo, defende a atuação do mercado imobiliário como gerador de empregos e desenvolvedor do crescimento da cidade. “Se fosse atender realmente ao mercado, você acha que teria (colocado) algum tipo de controle (na lei)? Não teria.”
A expectativa do vereador é que o projeto de lei chegue à Câmara até o fim do mês. A previsão é que a Prefeitura realize mais uma audiência pública antes do envio. Diferentemente do Plano Diretor, que envolve normas, incentivos e diretrizes, a Lei de Zoneamento trata da aplicação. Por isso, deve ser uma discussão mais no “detalhe”, “quadra a quadra”, como dizem os vereadores. “Espero que até dezembro a gente tenha a votação, mas sem ultrapassar qualquer etapa do processo participativo”, adianta.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão:
Como e por que o senhor se tornou relator da revisão do Plano Diretor e do zoneamento?
No segundo mandato, com a previsão da matéria urbanística para 2021, eu acabei optando. Sempre me interessei no assunto de política urbana e já atuava bastante, estudando muitos dos projetos. E, também, tenho em casa uma arquiteta: minha esposa é arquiteta. Houve muitas mudanças na comissão (de Política Urbana) sou o único que se manteve nesses três anos.
Na sua trajetória, em temas da causa animal, o senhor destacou ter conhecimento técnico sobre o assunto, por ser médico veterinário. Na revisão do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento, algumas pessoas o criticaram justamente por não ter formação na área. Isso impacta na sua experiência como relator?
O melhor ministro da Saúde foi o José Serra, que não é médico (é economista). Depende de muito conhecimento do assunto, lógico, não é à toa que estou há três anos. É melhor uma pessoa que não tem a formação e que fale o que a população e a cidade precisam do que alguns... É difícil utilizar um adjetivo aqui... Do que pessoas que não falam sobre a realidade da cidade. Todos os “istas” sabem das críticas que todo mundo tem pelo desenvolvimento da cidade nesses últimos nove anos. Chego nos lugares e o pessoal fala: “isso aqui não é culpa sua ainda”. É culpa de quem fez o Plano de 2014, seja lá o prefeito, um vereador, os vereadores que aprovaram.
Então, quando o senhor entrou para a Comissão de Política Urbana, já pensava em ser relator?
Não imaginava que poderia, mas me empenho ao máximo em fazer bem feito. Por isso que possivelmente o presidente da comissão (o vereador Rubinho Nunes, do União Brasil) e também os demais concordaram com a minha relatoria. Se perguntar, tenho certeza que a grande maioria dos vereadores vai falar que é para eu ser o relator do zoneamento. E não é só a base.
Por não ter formação na área, o que fez para se garantir no âmbito técnico?
Montei um time. Não só com a assessoria aqui da casa, mas também com alguns técnicos (do Município) emprestados para a Câmara. Não tenho dificuldade hoje em discutir sobre o Plano Diretor ou sobre o zoneamento com qualquer formação que se tem, porque busquei o conhecimento, apesar de não ter o diploma. Tem até algumas universidades falando que vão me dar o diploma honorário...
Mesmo sem a Prefeitura ter enviado o PL, a discussão da revisão do zoneamento já começou na Câmara?
O debate da revisão do zoneamento teve início em março de 2023. Com a revisão do Plano Diretor, algumas das demandas (nas audiências públicas) faziam referência à Lei de Zoneamento. Aqui, na Câmara, todo vereador que a gente cruza no corredor também vem falar sobre essa questão.
Uma das críticas à revisão do Plano Diretor foi que teria incluído mais sugestões do mercado imobiliário do que populares. O que o senhor tem a responder sobre isso?
Foram atendidas muitas demandas trazidas pela população. Alguns exemplos: todas as restrições que colocamos sobre a possibilidade de expansão e controle do eixo, como nas vilas (conjuntos oficialmente reconhecidos não permitem prédios altos). Se fosse atender realmente ao mercado, você acha que teria algum tipo de controle? Não teria. O mercado imobiliário é o mesmo que produz para o de menor renda e o alto luxo, de maior renda. O maior empregador da cidade é a construção civil. Então, não vejo nenhum tipo de problema em ter recepcionado as sugestões. Tudo o que foi pertinente na discussão do Plano Diretor, analisamos com todo o corpo técnico. E tudo o que foi possível, nós implantamos. Da mesma forma será feito agora, no zoneamento.
Há críticas de que se teria proposto mudanças muito expressivas para dar margem a uma negociação, um recuo. A primeira versão apresentada pelo senhor e depois modificada era de fato a proposta definitiva para a revisão?
Não foi proposto muita coisa para depois retirar. Não tem nada disso: era uma proposta que realmente nós acreditávamos. Em todas as tratativas, com todas as bancadas, foram feitas críticas em alguns pontos e acabamos retirando.
O que vai balizar a decisão sobre o que vai ser acatado? Ainda mais considerando que mudanças nas zonas, como deixar de ser ou virar eixo, têm o poder de valorizar um imóvel.
Os parâmetros técnicos, muitos destacamos no Plano Diretor. Muitos dos especialistas, a maioria deles, que falam por aí o que querem, eu não vi participando das audiências. Fica aqui o convite para que venham participar agora, no zoneamento. Damos a oportunidade para todo mundo participar, inclusive tivemos a participação de ex-prefeito, de ministro (nomes não foram citados).
A revisão do Plano Diretor aprovada tinha várias diferenças em relação ao PL da Prefeitura. No zoneamento, o texto final será bastante diferente do feito pelo Executivo?
A gente não conhece ainda o texto do Executivo. Pelo o que já vimos, possivelmente terá muitas alterações. O plenário da casa é um colegiado. O texto aprovado (do Plano Diretor) é ao menos dos 42 vereadores que concordaram, que estavam lá, que fizeram suas emendas. O Executivo concordou com aquilo que sancionou e vetou detalhes. A base de tudo foi uma concordância geral, apesar de ter sido um texto diferente. Até porque esse é o papel da Câmara: se a gente fosse só despachante do Executivo, não precisariam estar aqui os 55.
A última minuta apresentada pela Prefeitura dá a possibilidade de exclusão de eixos, isto é, áreas que deixariam de permitir prédios sem limite de altura. A mudança no zoneamento de alguns lugares vai ser tratada na Câmara?
Essa é a vontade do Executivo. A gente vai ter que ver como interpretar na aplicação, mas no texto do Plano Diretor, colocamos diversos critérios para o controle dos eixos, a questão do relevo, do uso do viário, então tem muitos controles que a gente pode fazer.
O senhor tem restaurantes em Pinheiros, que é um dos bairros com uma verticalização mais evidente e um forte movimento de oposição de moradores. Essa procura das incorporadoras já chegou a esses imóveis? O senhor compartilha do temor de alguns comerciantes de ter o negócio espremido entre vários prédios?
Eu estou sofrendo muito com isso. Onde eu tenho um dos restaurantes (na esquina das Ruas dos Pinheiros e Mateus Grou), são cinco ou seis imóveis. Três deles já são de uma incorporadora. Você acha que em quanto tempo eu vou sair de lá?
Mas isso é desejável para a cidade?
Não é, mas, se ali é um eixo que pode ser desenvolvido... E outra: não fui eu que determinei que poderia ser, foi o Plano Diretor de 2014. Então, se eu, comerciante, fosse culpar alguém, seria o prefeito e o relator da época.
Mas o senhor manteve esse eixo na revisão...
Como é que eu vou retirar? Vou legislar em causa própria? Não posso, aí vou incorrer em um crime.
São crescentes os relatos de comércios de que o ponto ficou muito caro e que não conseguem se encaixar nas fachadas ativas (prédios com comércio no térreo, incentivados pelo Plano Diretor)...
A fachada ativa, no modelo de 2014, realmente não deu certo. Temos diversos exemplos. Aprovamos, no Plano Diretor, algumas mudanças, e acredito que, no zoneamento, mude mais. No texto publicado pelo Executivo, já tem mudanças.
A sua candidatura a vereador foi apoiada por nomes ligados ao mercado imobiliário. Essa proximidade não interfere na revisão?
Tenho amigos no mercado imobiliário que me conhecem. De antes de nascer. Na eleição de 2020, eu nem sonhava em participar e muito menos ser o relator. O vínculo que eu tenho com esses doadores não é de agora, são bem antigos e não interfere em nada das decisões que tenho aqui.
Na revisão do Plano Diretor, foi revelada uma mensagem em que o vereador Adilson Amadeu (União Brasil) cobra o apoio de representantes do mercado imobiliário ao prefeito porque foram absorvidas demandas do setor no projeto. A proximidade da eleição influencia na revisão?
Se interfere nas decisões que ele tem, é melhor perguntar para ele. Tem vereador, inclusive, que recebeu doação e votou contra.
A ação movida pelo Ministério Público durante a revisão do Plano Diretor questionava a falta de estudos para embasar as mudanças sugeridas. Existem esses levantamentos?
Tudo que foi feito colocado no texto teve amparo nos parâmetros técnicos. Tudo o que foi possível foi apresentado.
Vai mudar a altura máxima de construções nos miolos de bairro, em Zonas Mistas e de Centralidade, por exemplo?
Acredito que seja difícil uma mudança de gabaritos, mas não posso definir sozinho.
Quando o primeiro texto apresentado pelo senhor para o Plano Diretor sugeriu a isenção de ISS a estádios de futebol, falou-se que teve motivação pessoal. A sua ligação com o Corinthians interferiu nessa proposta?
Por não ter sido só minha, não é uma questão pessoal. Até porque, se fosse pela minha paixão pessoal, teria colocado só para o Corinthians.
Outra crítica à revisão foi a apresentação do substitutivo a menos de cinco dias da última votação. O texto da segunda votação no zoneamento terá mais tempo de veiculação?
O regimento interno dá a obrigatoriedade de cumprir duas audiências públicas. Nós fizemos 55, três com o último substitutivo. Tivemos todo o tempo para fazer a discussão, inclusive estive com um dos grandes críticos (à revisão) no sábado anterior. Ele saiu umas 11h30 da noite e eu saí 1h30 de sábado.
O que o senhor espera que mude na cidade depois da revisão?
Espero que tenha uma menor desigualdade nas regiões da cidade, um adensamento mais homogêneo de todas as regiões e que a gente possa oferecer à população que mora hoje, em locais insalubres, uma possibilidade de ter uma moradia mais digna, mais próxima não só do trabalho, mas da sua família, com mais emprego e renda para a cidade.
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