A construtora São José, que ergueu um prédio sem alvará no Itaim Bibi, demoliu irregularmente o telhado de uma loja na Rua Cônego Eugênio Leite, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. O imóvel fica anexo a um galpão onde há um restaurante – os dois imóveis compunham a antiga Fundição Rebellato, que funcionou no início do século 20. A demolição foi embargada pela Prefeitura antes de atingir o restante do imóvel.
Essa é uma das construções da região da antiga Vila Cerqueira César, que teve o tombamento provisório determinado em outubro pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) em outubro.
Segundo levantamento do Estadão, são mais de 600 imóveis protegidos por essa decisão. Pela lei, imóveis tombados, mesmo provisoriamente, não podem ser demolidos ou sofrerem alterações na fachada e na estrutura exterior sem aval de órgão especializado.
A construtora afirma que a Prefeitura autorizou a demolição, mas a gestão municipal diz que o tombamento cancela essa permissão.
O embargo foi feito após denúncia dos vizinhos e da organização Pró-Pinheiros em dezembro. A Subprefeitura de Pinheiros afirma que “juntamente com a interrupção das atividades” foi aplicada multa de R$ 7 mil à construtora.
A fiscalização da subprefeitura diz monitorar o local “para inibir a retomada da demolição”. No entanto, em 14 de dezembro, um boletim de ocorrência por desrespeito ao auto de embargo foi registrado por vizinhos.
Conforme a resolução de abertura de estudo de tombamento dos imóveis, “obras que afetem, transformem ou alterem qualquer elemento externo do edifício e seu terreno, como cobertura, fachadas, vãos, esquadrias, pisos e revestimentos, muros e grades, recuos, jardins e construções anexas” devem ser submetidas à prévia análise e deliberação do Departamento de Patrimônio Histórico e do Conpresp. Além disso, demolições integrais não são passíveis de aprovação.
O tombamento provisório inclui imóveis de períodos diversos do século 20, como o Mercadão de Pinheiros, a sede do Instituto Goethe, o Templo Espiritualista de Umbanda São Benedito, a Igreja do Calvário, vilas, conjuntos de casas, desenho de ruas, escadarias, predinhos e até um edifício projetado pelo icônico arquiteto Vilanova Artigas.
Empresa cita aval da Prefeitura e diz que não foi avisada sobre tombamento
Ao Estadão, o executivo responsável pela construtora, Fernando Fonseca, disse que a Prefeitura autorizou a demolição da parte superior do imóvel em 29 de novembro. A referida autorização foi publicada no Diário Oficial do Município em 6 de dezembro e confirmada à reportagem pela Prefeitura.
No entanto, a gestão municipal aponta que, com o tombamento provisório, qualquer documento de autorização é automaticamente cancelado.
A proteção dos imóveis na região, em caráter provisório, havia sido determinado pelo Conpresp em 2 de outubro. A Prefeitura não explicou por que foi publicada a permissão para a demolição mesmo após a decisão do órgão de patrimônio.
Segundo a Prefeitura, em 21 de dezembro, foi enviado ofício à construtora requerendo “implantação imediata de cobertura provisória, reversível e não destrutiva sobre o imóvel no trecho em que houve a demolição, de modo a protegê-lo de intempéries e evitar maiores prejuízos à sua materialidade”.
O documento exigia também que, “em caráter emergencial”, a construtora iniciasse “projeto para tratar de solução arquitetônica definitiva para reparar a cobertura e demais trechos demolidos.” Mas, até a última semana, o imóvel continuava sem solução para o telhado.
Na segunda-feira, 8, uma vistoria da Prefeitura identificou que as medidas para instalação imediata de cobertura provisória “não haviam sido realizadas e que o imóvel parcialmente demolido permanecia sem qualquer tipo de cobertura”. A gestão disse ter reiterado “a cobrança das medidas provisórias e imediatas, bem como a apresentação de projeto de solução definitiva para análise do órgão”.
Fonseca afirma que a construtora não havia sido notificada sobre o tombamento e justifica a demolição dizendo que “o imóvel, por ser muito antigo, apresentava risco de desabamento, por conta de estruturas estarem completamente comprometidas”. A Prefeitura afirma desconhecer o risco. A decisão sobre o tombamento provisório foi publicada no Diário Oficial e noticiada na imprensa.
“Não fomos notificados de eventual processo de tombamento do imóvel”, diz o executivo. “O processo de demolição segue à risca o quanto autorizado pela Prefeitura.”
O tombamento provisório foi decidido após estudo prévio de técnicos do Município e pedidos de moradores do entorno. A decisão não é unânime e tem oposição de parte dos proprietários. A preservação é obrigatória até a apresentação de estudo mais aprofundado e deliberação final do conselho, o que pode levar de meses a alguns anos.
Em maio de 2023, caso semelhante ocorreu na região do Ibirapuera, na zona sul. Uma vila na Avenida Brigadeiro Luís Antônio começou a ser preparada para a demolição dias após a determinação do tombamento provisório. A derrubada das casas foi barrada e o grupo imobiliário proprietário foi multado e alegou desconhecer a então recente decisão de tombamento.
O tombamento provisório motiva controvérsia em Pinheiros e foi um dos casos mais citados por vereadores e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) após a recém-aprovada revisão da Lei de Zoneamento incluir mudanças na dinâmica de tombamento da cidade.
Parte dos proprietários começou a se mobilizar para reverter a decisão no ano passado e reclama de possível desvalorização de seus imóveis. Uma grande porção de Pinheiros vive um boom imobiliário ligado a incentivos municipais para a verticalização perto de estações de metrô.
“Temos nos manifestado na revisão do planejamento urbano de Pinheiros e, hoje, de toda a cidade para que ela seja mais saudável, humanizada, inclusiva e sustentável, equilibrando o novo e o antigo para que o bairro cresça sem perder suas características históricas”, diz Rosanne Brancatelli, ativista da Pró-Pinheiros que participou da denúncia sobre demolição.
Inquilina vê pressão por parte da construtora
A locatária da parte inferior do imóvel da Cônego Eugênio Leite, Karina Barretto, vê pressão da São José contra os inquilinos. Segundo ela, dona do restaurante Futuro Refeitório, o contrato de locação do espaço se deu antes de a construtora adquirir o imóvel e, impedida de retirá-la, a empresa demoliu a parte superior para “pressioná-los” a sair.
“Isso tem assustado meus funcionários, que ficam com medo de serem demitidos a qualquer momento”, afirma ela. Segundo a empresária, sem o telhado da parte superior, diversos equipamentos do restaurante, que ficam no piso de baixo, correm risco de estragar pela infiltração de água da chuva.
Fonseca nega que a construtora queira expulsar os inquilinos e diz que reconhece o prazo do contrato de aluguel como legítimo. Segundo ele, o único motivo para a demolição seria o dano estrutural do imóvel, que faz com que ele corra “risco de desabar”, podendo “machucar pessoas que passam pela calçada”.
Com uma construção de cerca de cem anos, o imóvel pertenceu ao artista José Rebellato, responsável por obras do cemitério São Paulo, além de diversas outras dispostas em espaços públicos da cidade.
O motivo do tombamento é, justamente, essa relação do imóvel com a história da antiga Vila Cerqueira César. Por isso, as especialistas do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Raquel Schenkman, presidente, e Stela Da Dalt, representante do instituto no Conpresp, definem como “lamentável” o desrespeito às normas de preservação (mesmo tombamentos provisórios).
“A atitude individual daqueles que não respeitam a legislação e regulação municipal, além de passível de punições, denota completo desrespeito à sociedade paulistana, que tem se empenhado na preservação da história da cidade”, dizem as representantes do IAB.
“As pessoas gostam de Pinheiros pelos restaurantes, pela gastronomia, mas esse monte de empreendimento de prédios tira justamente o que é o atrativo do bairro”, acrescenta Karina.
Onde foram parar os predinhos da Rua dos Pinheiros?
Alguns moradores do bairro também reclamam que um conjunto de sobrados na Rua dos Pinheiros, próximo ao Largo da Batata, foi completamente demolido nos últimos meses, mesmo com a determinação de tombamento temporário.
A denúncia à Prefeitura partiu do próprio IAB, por meio da arquiteta Stela Da Dalt, conselheira do Conpresp em nome do instituto, após ela passar pela região e perceber que o terreno, hoje completamente vazio, faz parte do mapa do estudo de tombamento.
“Eu tinha um amigo que morou em um desses prédios que estão no estudo de tombamento e, passando por esse comecinho da Rua dos Pinheiros, senti a falta do prédio. Até fiquei meio perdida, procurando. Quando vi no mapa que ele estava, de fato, na resolução (de tombamento) e constatei a demolição, tirei uma foto e fiz a denúncia”, diz Stela.
A demolidora encarregada desta obra, chamada Primavera, alega que a construtora que comprou o terreno e contratou seus serviços “solicitou alvará de aprovação de obra nova” e que o pedido foi “aprovado, inclusive com outorga onerosa do direito de construir já paga pela empresa”.
O nome da construtora não foi revelado. A Prefeitura confirmou que os imóveis, números 1.208 e 1.230 da Rua dos Pinheiros, de fato tinham alvará para demolição.
O imbróglio, neste caso, se dá porque a demolidora afirma que a demolição dos prédios se deu antes da deliberação do Conpresp. A empresa não diz, no entanto, qual a foi a data de demolição.
De acordo com vizinhos, a obra teria começado por volta de agosto (dois meses antes do tombamento provisório). Os pedidos para a demolição dos dois prédios – além de alguns do entorno, nas Ruas Cunha Gago e Artur de Azevedo – foram protocolados em maio.
A Prefeitura diz investigar se a demolição completa dos imóveis se deu antes ou depois do tombamento provisório. “A eventual necessidade e pertinência de uma reconstrução dependerá da conclusão da análise técnica e jurídica e de deliberações do Conpresp”, afirma.
Caso a demolição tenha sido feita após o tombamento provisório, o proprietário também pode ser multado. Mesmo com alvará para demolição anterior à deliberação do tombamento temporário, qualquer mudança estrutural se torna proibida após a determinação da Conpresp.
Os imóveis vinham sendo estudados para tombamento por evidenciarem, na sua arquitetura, “as práticas de ocupação daquele território e a importância e a centralidade que essa via teve desde cedo no bairro”, segundo a Subprefeitura de Pinheiros.
Eles tinham características que apontavam que foram concebidos para uso comercial no térreo e para habitação ou aluguel residencial no pavimento superior, com dois acessos independentes, algo bastante comum naquele período em ruas movimentadas, como as de Pinheiros.
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