O corpo do menino Ryan da Silva, de 4 anos, que morreu durante ação da Polícia Militar no Morro do São Bento, em Santos, foi enterrado nesta quinta-feira, 7, no Cemitério da Areia Branca, no litoral paulista. Ele brincava na rua quando foi atingido por um tiro na barriga. Segundo a PM, pela dinâmica da ocorrência, o tiro foi disparado provavelmente por um policial.
A presença de policiais militares no enterro foi vista como uma intimidação por parte de familiares e criticada pelo ouvidor das Polícias, Cláudio Aparecido. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública disse que a Polícia Militar vai analisar as denúncias de possíveis intimidações por parte dos policiais. “As ações de patrulhamento preventivo e ostensivo na região foram intensificadas desde a última terça-feira, 5, com unidades do policiamento de área e de outros batalhões”, afirmou a corporação.
Também em nota, a Polícia Militar afirmou que policiais faziam o patrulhamento no Morro do São Bento quando “um cortejo realizado por moradores do local se deparou com a viatura”. Ainda de acordo com a PM, os policiais foram hostilizados. “Por se tratar de local de alto risco, faz-se necessário que os policiais militares das tropas especializadas mantenham-se atentos e em prontidão caso seja necessário um desembarque emergencial, utilizando-se para tanto de táticas e procedimentos específicos.”
Presente no velório, o ouvidor das Polícias, Cláudio Aparecido, elevou o tom contra a PM. “Tenho certeza absoluta que o policial que praticou essa atrocidade contra essa criança deve estar desesperado. Imagino que ele deve estar desesperado. Essa certeza eu não tenho em relação ao comandante dele, porque mandar viaturas para porta do velório, impedir cortejo, atrapalhar cortejo, é uma falta de respeito, de vergonha na cara”, disse Cláudio Aparecido.
O ouvidor chegou a discutir com um dos policiais que estava no local. O Estadão apurou que o CPI-6, Comando de Policiamento responsável pela investigação, determinou investigação sobre o caso.
“O que chama atenção não é a presença da polícia, mas a hostilidade da polícia no território”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que esteve no enterro. Segundo ela, as viaturas estavam presentes desde o velório até o momento do enterro e chegaram a dificultar o cortejo no Morro de São Bento.
“A impressão que deu é que a polícia estava tentando impedir um processo de despedida de uma criança que foi morta pelo próprio Estado, o próprio porta-voz da polícia sinalizou isso (ao dizer que o tiro muito provavelmente partiu de um policial)”, acrescentou.
José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da PM, também disse ter visto o episódio com estranhamento. “Qualquer ação de solidariedade com a mãe deveria ser feita não com a viatura, mas por meio do chefe do batalhão”, disse. “Dá a impressão de intimidação, porque a polícia precisa ser correta e ética, mas também parecer correta e ética.”
Coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha também acompanhou as cerimônias e aponta que não há nenhuma normativa que contraindica abordagens nos arredores de enterros, até porque é algo muito específico, mas diz ser contraprodutivo ter ações assim. “Por mais que tivesse uma infração de trânsito acontecendo ali, olha o desgaste que isso gerou”, disse. Ainda mais por conta das circunstâncias da morte, diz ele. “Qual é o ganho da segurança pública de ter uma presença tão ameaçadora na frente do enterro de uma criança de 4 anos?”
Amigos e parentes se reuniram para prestar homenagens a Ryan. Eles usavam blusas brancas, e soltaram balões brancos. Foi realizado um cortejo até o Morro São Bento antes do sepultamento. Em estado de choque durante as cerimônias, a mãe do menino seguiu ao lado do caixão, na cadeira de rodas.
“Um batalhão de choque, com policiais portando fuzis e evitando a passagem do cortejo é negativo sobre todos os aspectos, inclusive do ponto de vista institucional”, disse Gabriel Sampaio, diretor do Conectas Direitos Humanos. “Uma instituição que deveria estar prestando suas condolências e compartilhando desse luto está reforçando os elementos de arbitrariedade”, acrescentou.
Sampaio entende que a presença da polícia em um momento de velório e de luto não se justificava por não haver, ali, naquele momento, nenhuma circunstância que necessitasse das forças de segurança. Além disso, destaca que essa presença policial, descrita por ele como “intimidatória”, pode interferir no curso das investigações de um crime que ainda não está esclarecido.
“Portanto, essa intimidação não fica no campo simbólico de desrespeito ao luto das famílias. Ela abre para uma situação em que essa intimidação passa a comprometer a efetividade da apuração das circunstâncias da morte. As pessoas que poderiam apresentar algum tipo de prova, passam, também, a estar intimidadas por esse tipo de atuação”, afirma.
Esse é o caso mais recente de problemas relacionados à presença de policiais militares em velórios ou enterros de vítimas de ações envolvendo a PM. Em outubro, por exemplo, três PMs foram filmados agredindo parentes de dois rapazes mortos em confronto com a polícia no interior de SP. Na ocasião, a SSP disse apurar o caso.
Inquérito busca esclarecer a origem do tiro
Na quarta-feira, 6, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) informou que a morte de Ryan aconteceu após policiais reagirem ao serem atacados por um grupo com cerca de 10 suspeitos. Os agentes faziam patrulhamento em uma área de tráfico de drogas quando foram recebidos a tiros. A Polícia Civil abriu inquérito e determinou perícia nas armas apreendidas no local para esclarecer a origem do tiro que matou a criança
Outros dois adolescentes foram atingidos durante uma troca de tiros entre os policiais e suspeitos. Um deles morreu. A ação ainda deixou uma jovem de 24 anos, vítima de bala perdida, ferida de raspão.
Na quarta-feira, entidades como a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Sou da Paz, além de parlamentares, divulgaram nota cobrando apuração do caso.
“É inadmissível que a gestão da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, assim como o comando da Polícia Militar de São Paulo, considere a morte, sobretudo de crianças, como um resultado aceitável da atuação das forças policiais”, diz trecho da nota, assinada por 13 entidades ou pessoas.
O texto divulgado pelas entidades nesta quarta-feira relembra outros casos ocorridos neste ano: “Em abril, em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), uma criança de 7 anos foi ferida no olho e perdeu a visão após ser atingida por um disparo durante uma operação da PM enquanto ia para escola. Um mês antes, em março, Edneia Fernandes Silva, mãe de seis crianças, foi morta por um tiro na cabeça em uma praça de Santos, durante uma intervenção da PM na chamada Operação Verão”.
O pai de Ryan, Leonel Andrade dos Santos, também foi morto pela Polícia Militar, durante a Operação Verão, promovida entre janeiro e abril deste ano. Ele tinha 36 anos e usava muletas por causa de uma deficiência nas pernas.
Os policiais alegaram que ele teria apontado uma arma em direção a eles, durante uma investigação de tráfico de drogas. Um amigo dele, Jeferson Miranda, de 37 anos, também foi baleado e morto. A Operação Verão, que deixou um saldo de 56 mortos, é investigada pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), do Ministério Público de São Paulo. / COLABOROU MARCELO GODOY
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