Cracolândia ‘anda’ por SP, passa por 11 endereços e deixa rastro de prejuízo e medo; veja mapa

Fluxo itinerante afeta funcionamento do comércio e assusta moradores da região. Atendimento a usuários também é dificultado por dispersões. Prefeitura diz oferecer tratamento diariamente e SSP vê queda em indicadores de criminalidade

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Foto do author Ítalo Lo Re
Foto do author Lucas Thaynan
Atualização:

Dezenas de pontos comerciais fechados, muitos com placas de “aluga-se”. Nos que permanecem abertos, duas cenas principais: ou lojistas escorados na porta, atentos à movimentação nas ruas, ou afundados atrás do balcão, desanimados com a clientela escassa. Nas calçadas, passos na maioria das vezes apressados. Esse é o cenário encontrado por quem percorre algumas das ruas de Santa Ifigênia, bairro no centro de São Paulo que, no último um ano e meio, foi o que mais abrigou a Cracolândia.

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Levantamento feito pelo Estadão com base em mapeamento da Prefeitura mostra que a aglomeração de usuários de drogas se fixou em ao menos 11 vias só neste ano. O fluxo chegou a diminuir no fim do primeiro semestre, mas voltou a crescer entre julho e setembro.

Foram, em média, 513 dependentes químicos por turno nesse período, ante 306 no trimestre anterior, segundo a contagem oficial. A população, porém, fala que a impressão é que há ainda mais, já que parte dos usuários ficam em trânsito pelas ruas do centro.

Há pelo menos dois meses, a Cracolândia passa o dia na Rua dos Protestantes, entre Santa Ifigênia e Luz. A via possui menos comércio que endereços vizinhos, mas episódios de violência por lá chamam atenção – recentemente, um vigilante foi morto em tentativa de assalto.

Além dos roubos a pedestres, destaca-se também a atuação de quebra-vidros, modalidade de furto a carros. De noite, os usuários voltam para a Rua dos Gusmões, no cruzamento com a Avenida Rio Branco, um dos trechos mais ocupados pelo fluxo no ano.

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“Muitos comerciantes já foram assaltados”, diz a lojista Edna Pereira, de 53 anos. Administradora de um comércio aberto pela família há três décadas na região – mesmo tempo de existência da Cracolândia –, ela conta que recentemente foi vítima de roubo na saída do trabalho. O ladrão levou todos os seus pertences após a ameaçar com uma faca.

Desde então, Edna passou a fechar a loja por volta de 17h, pelo menos uma hora mais cedo que antes. A medida também tem sido adotada por outros lojistas diante da alta de violência.

A área onde se concentram os usuários de drogas tem visto uma escalada de tensão nos últimos meses. Desde o ano passado, o fluxo deixou de se concentrar em um único ponto e circula em várias vias do centro, como as ruas Conselheiro Nébias e dos Guianazes.

Em julho, frequentadores da Cracolândia realizaram ataques a um ônibus, uma viatura e um caminhão de lixo no cruzamento da Rua Vitória e a Alameda Barão de Limeira. Já a Avenida São João teve estabelecimentos saqueados em abril.

Como mostrou o Estadão, em julho, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), desistiu de tentar transferir o fluxo de usuários de drogas da Cracolândia para a Rua Prates, no Bom Retiro, também na região central.

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A proposta havia provocado queixas de comerciantes e críticas de especialistas em segurança pública. A população relata que o fluxo chegou até a ser conduzido para perto da Marginal Tietê no começo daquele mês, mas voltou rapidamente para o centro – o endereço não é reconhecido pelo mapeamento da Prefeitura, que foca na região da Luz.

Cracolândia ganha ‘horário comercial’

Após um período de maior movimentação, a Cracolândia agora se concentra, mais ou menos de 7h às 18h, na Rua dos Protestantes, nos arredores da Estação da Luz. A mudança se deu após protestos de comerciantes para afastar o fluxo de vias mais movimentadas, como a Rua Santa Ifigênia.

Ainda com a nova configuração, cenas de violência seguem se repetindo. Em agosto, o vigilante João da Silva Sousa, de 54 anos, foi assassinado após levar uma facada em tentativa de assalto nos arredores da Rua dos Protestantes. “O nóia me furou”, disse antes de morrer. O latrocínio assustou ainda mais moradores do bairro.

Agentes da Guarda Civil Metropolitana acompanham movimentação do fluxo da Cracolândia na Rua dos Protestantes Foto: Werther Santana/Estadão - 12/10/23

“Todo dia tem roubo aqui, principalmente aqueles feitos por quebra-vidros”, diz Nelson Ribeiro, de 61 anos, sócio de um estacionamento na região.

Segundo ele, por mais que os veículos não passem pela Rua dos Protestantes, que fica completamente fechada pelo fluxo, muitos enfrentam trânsito em ruas próximas, como a Mauá e General Couto de Magalhães. Os ladrões se aproveitam da situação. “Uma vez presenciei um deles entrando na pista só para um outro se aproveitar disso e roubar o celular de um motorista.”

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Nelson afirma ainda que pedestres também são assaltados com frequência. No começo do mês, ele viu um usuário de drogas furtando o celular de dentro da mochila de um homem que passava por perto da Rua dos Protestantes no começo da manhã – por ser bem próxima da Estação da Luz, a movimentação de pessoas por ali costuma ser grande. A vítima só teria notado que foi furtada quando a música que escutava no fone de ouvido parou repentinamente.

“Quando ele percebeu, o bandido disse que até poderia devolver o aparelho, mas só se ele pagasse R$ 350. Acredita nisso?”, afirma, indignado.

Segundo Nelson, a vítima foi até uma agência bancária sacar o valor e voltou minutos depois até o local onde ocorreu o furto. O ladrão, um frequentador do fluxo, o esperava por lá. Com o dinheiro em mãos, correu para dentro da aglomeração. “É um caso que não está nas estatísticas, o homem (vítima) provavelmente não registrou boletim.”

Área onde se concentram os usuários de drogas tem visto uma escalada de tensão nos últimos meses Foto: Werther Santana/Estadão - 12/10/23

Dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) apontam que os roubos registrados pelo 3º Distrito Policial (Campos Elíseos) entre janeiro e agosto deste ano cresceram 13,9% em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 4,8 mil assaltos no período, o equivalente a mais ou menos 20 casos por dia. Já os furtos cresceram em proporção parecida (13,75%), chegando a 7,9 mil nos oito primeiros meses deste ano.

Lojas têm queda de 60% nas vendas

“O impacto (da Cracolândia) no comércio é brutal, a gente teve uma queda de 60% nas vendas das lojas da região em comparação com o ano passado”, diz Fábio Zorzo, presidente da União Santa Ifigênia (USI), entidade que representa comerciantes e proprietários de imóveis da região. Ele foi um dos organizadores de uma manifestação há cerca de dois meses para cobrar medidas da Prefeitura e do governo do Estado.

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“Estou enxergando melhora, só que é pouco em relação ao que a gente precisa para o bairro voltar a ser o que é”, afirma Zorzo.

Na última semana, ele se reuniu com o vice-governador do Estado, Felicio Ramuth, para propor soluções para a região. Uma ideia é criar eventos temáticos para vitaminar o comércio de Santa Ifigênia, bairro conhecido pela venda de eletrônicos e peças de motocicletas. “A água está no pescoço, já passou da hora de resolver isso.”

Lojistas afirmam que não só os comércios nas vias onde o fluxo está são prejudicados, mas também de ruas vizinhas, afetadas pela imprevisibilidade da Cracolândia. Alguns dos comerciantes ouvidos pela reportagem, parte deles com lojas abertas há mais de décadas, relatam que estão tendo de renegociar o aluguel pela primeira vez diante da situação. Segundo eles, medidas como a isenção do IPTU, sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), têm pouco efeito prático.

Comerciantes tentam última cartada

A reportagem do Estadão passou a tarde da última terça-feira, 10, percorrendo ruas da região da Cracolândia. Com a permanência do fluxo na Rua dos Protestantes durante o dia, donos de algumas lojas que funcionavam na rua decidiram fechar as portas. Os comerciantes que ficaram por lá se veem de mãos atadas.

Entre parte dos lojistas, há a ideia de tentar uma última cartada até o fim do ano e, caso não haja melhora, também encerrar os negócios. “Não vejo luz no fim do túnel, infelizmente a gente tem menos voz do que ruas mais tradicionais da região, como a Santa Ifigênia”, disse o dono de uma loja próxima ao fluxo. Ele preferiu não se identificar. “A Cracolândia está na minha porta. Tem cliente que compra aqui há 40 anos, mas parou de vir. A maioria está com medo.”

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Sócio de uma lanchonete na Rua Vitória, Ricardo Costa, de 41 anos, afirma que perdeu quase metade dos clientes. “Só consomem os comerciantes que trabalham por aqui”, diz. Agora, os proprietários do estabelecimento planejam focar em vendas por aplicativos de entrega de comida para tentar manter o negócio aberto. “Estamos fazendo o cadastro nas plataformas, vamos ver se as coisas melhoram, mas está todo mundo muito desanimado.”

Em parte dos estabelecimentos, o horário de fechamento foi adiantado para perto das 17h, para evitar riscos diante da movimentação do fluxo no fim da tarde. “Antes vinham ônibus para cá. As galerias viviam lotadas de gente, agora elas parecem um museu”, diz o porteiro de um prédio da região, que preferiu não se identificar. Ele relata que moradores têm dificuldade de pedir carros de aplicativo e evitam ao máximo sair de noite.

‘Está pior do que na época da pandemia’

Para o psiquiatra Flavio Falcone, idealizador do projeto Teto, Trampo e Tratamento, que auxilia no acolhimento a frequentadores da Cracolândia há mais de uma década, os efeitos da dispersão do fluxo foram “drásticos” para a região.

“Conheço vários lojistas que me falam, bem como eu também vejo, como morador da região, que Santa Ifigênia nunca esteve tão ruim. Está pior do que na época na pandemia”, afirma ele, que vai até o fluxo pelo menos uma vez por semana.

“Em relação aos usuários, toda essa movimentação não diminui o consumo. Pelo contrário, aumenta. A violência faz com que obviamente eles consumam mais, até para aguentar tanta violência, e o que eu acho mais grave é a perda de vínculo com as equipes de saúde”, diz. Segundo ele, muitos têm dificuldades de prosseguir em tratamentos por conta das dispersões.

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Falcone diz ainda que também foi visível o aumento da violência na região, inclusive com a cooptação de usuários pelo crime organizado.

“Como não tem um programa de trabalho destinado a essa população, como eles sustentam o uso das diversas substâncias, como cachaça e crack? Roubando celular. Isso faz com que o ambiente ali vire uma praça de guerra, porque ninguém aguenta ser roubado toda semana”, diz. “De um lado, o poder público joga bomba e dá cassetada. De outro, oferece cuidado. Isso cria um vínculo que não é terapêutico.”

‘Inconsistência dos dados’

Sobre a mensuração do fluxo realizada pela Prefeitura, a percepção é que a não realização de uma contagem no período noturno limita o entendimento do cenário.

Após passar o dia na Rua dos Protestantes, no fim da tarde a aglomeração da Cracolândia é direcionada por agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar para passar a madrugada na Rua dos Gusmões. O trecho, localizado entre dois estacionamentos, é um dos pontos onde os usuários de drogas mais ficaram neste ano.

“De dia tem menos gente. Porque tem muita polícia e eles estão no ‘corre’ para conseguir dinheiro para usar a drogas à noite”, diz Falcone.

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Ele afirma que a Cracolândia, desde que se dispersou da Praça Julio Prestes, no começo do ano passado, se espalhou ainda mais. “Eu que os conheço pelo nome, pela história, vejo vários dos frequentadores embaixo do Minhocão, do lado do Terminal Princesa Isabel. Eles circulam durante o dia e a noite, mas entendem que o domicílio deles está ali na Cracolândia.”

Ação realizada em julho pela Polícia Militar na Rua dos Gusmões após frequentadores do fluxo atacarem ônibus e caminhão de lixo Foto: Ítalo Lo Re/Estadão

Pesquisador no LabCidade, laboratório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Aluízio Marino afirma que o aumento da insegurança é o principal impacto decorrente da imprevisibilidade gerada pela dispersão do fluxo.

“Não que antes estivesse bom, mas o que a gente está vendo é a situação cada vez pior”, diz. “A questão central é o investimento nesse território e no cuidado dessas pessoas. Ou a gente muda a forma como a gente lida com isso, ou a gente só vai ficar remediando.”

O pesquisador afirma que, ainda que a intenção de divulgar a contabilização do fluxo seja “bastante positiva”, um outro ponto é que ainda faltam esclarecimentos em relação à metodologia adotada pela Prefeitura.

“Há uma inconsistência dos dados com a realidade. Isso é perceptível pela narrativa das pessoas que moram por lá e olhando as cenas de uso como estão hoje”, diz Marino. Em mapeamento publicado por ele em julho, dados do governo do Estado apontavam que o fluxo ultrapassava mil pessoas. Quando se busca pelas mesmas semanas no sistema da Prefeitura, a contabilização não supera 350 frequentadores.

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A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos, afirmou que a movimentação do chamado fluxo é monitorada por meio do Programa Dronepol da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU). “Esse monitoramento faz a estimativa da quantidade de pessoas pelo método de Jacobs, que trabalha a contagem a partir da densidade das aglomerações visíveis de mais de 100 pessoas”, diz a Prefeitura.

A gestão municipal afirma que, nos casos em que o volume de pessoas é inferior a uma centena, o método Jacobs não é aplicado e o Programa registra fotografias do local, que são incluídas em um relatório técnico. Segundo a gestão municipal, o monitoramento do Dronepol ocorre no período matutino, entre 10h e 11h, e no período vespertino, entre 15h e 16h. A pasta afirma que no período da noite não há registros de contagem em razão da inviabilidade técnica de captura de imagens noturnas.

Ainda segundo a Prefeitura, são realizadas ações diárias de abordagem, acolhimento e oferta de tratamento na região por meio do Programa Redenção, com a atuação de mais de 170 agentes das secretarias da Saúde e Assistência Social.

“Em setembro deste ano foram realizadas, em média, 447 abordagens por dia e 66 encaminhamentos para acolhimento e diferentes tipos de tratamento. Uma em cada seis abordagens resultou em encaminhamento. As ações do programa também envolvem o monitoramento e ações de inteligência em segurança pública, requalificação do espaço urbano e zeladoria urbana”, disse.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública disse que, na primeira semana de outubro, houve uma redução nos índices de roubos e furtos, seguindo a tendência de queda já observada nos meses anteriores. “Esses resultados positivos indicam uma melhoria contínua na segurança nessas áreas. Em comparação com a mesma semana de 2022, houve uma redução de 24% nos furtos e 49% nos roubos”, afirmou.

“A diminuição dos incidentes de roubos e furtos em Campos Elísios e Santa Cecília, de 2 a 8 de outubro, é o resultado da implementação de medidas de segurança”, complementou a pasta. Segundo a secretaria, as operações policiais realizadas de 2 a 8 de outubro na área por onde circula a Cracolândia resultaram na prisão em flagrante de 64 infratores, além da detenção de 15 procurados. “No último dia 10, a Polícia Militar lançou a 2ª fase da Operação Impacto Centro para reforçar o policiamento na região”, disse a secretaria.

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