A médica Marília Dalprá, de 67 anos, costumava sair para correr antes do amanhecer havia 15 anos. Ficava pelos arredores de casa, no Parque Continental, zona oeste de São Paulo. Era tão assídua que alguns moradores até a cumprimentavam pelo nome. “Todo mundo me conhece.” Essa rotina, porém, foi interrompida de forma brutal.
Há pouco mais de um mês, ela sofreu uma tentativa de assalto por dois homens em uma moto – teve quatro costelas quebradas e parte do pulmão comprometida - e agora convive com as sequelas. Um dos bandidos mordeu a mão de Marília, para tentar tirar a aliança. O outro desferiu chutes enquanto ela estava caída no chão. Não conseguiram levar nada.
Um dos suspeitos foi preso preventivamente, segundo a Secretaria da Segurança Pública do Estado. “Ele é apontado como o piloto da motocicleta, que teria chutado a vítima”, diz a pasta. As investigações, conduzidas pelo 93º Distrito Policial (Jaguaré), continuam para identificar e prender o segundo envolvido.
Embora os roubos tenham atingido o menor nível da série histórica em 2024, uma onda de casos violentos assusta os paulistanos. A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem afirmado reorientar o policiamento conforme os índices criminais. O governador também defende endurecer as penas, para evitar a soltura de presos e o risco de reincidência criminal.
Na série Vítimas da violência, o Estadão conta histórias de quem sofreu - e ainda sofre - os efeitos da escalada de insegurança em São Paulo.
Vítima gritou por socorro e foi mordida
Imagens de câmeras de segurança captaram a abordagem a Marília. “Deu para ouvir o barulho das minhas costelas quebrando com um dos chutes”, diz. Ela recebeu a reportagem em casa nesta semana. Ainda em fisioterapia por conta das fraturas causadas pelas agressões, a médica falou um pouco do ataque e sobre como tenta adaptar a rotina.
Marília relata que, no dia da tentativa de assalto, um sábado, saiu para correr por volta das 4h45. Estava a poucos quarteirões de casa e avistou uma moto, com dois homens, se aproximando com um farol forte. “Quando vi eles retornarem na esquina, percebi que iam me abordar”, diz.
A médica conta que, quando o veículo se aproximou, tentou ir no sentido oposto para voltar para casa, mas não conseguiu escapar – um dos bandidos desceu da garupa da moto e a segurou. Ela gritou por socorro, enquanto o homem pedia insistentemente que ela passasse seu telefone.
“Falei que não ando com celular quando corro. Ele olhou minha mão e falou: ‘aliança’. Mas falei que a aliança não saía fácil (do dedo)”, diz. “Ele então tentou arrancar a aliança com os dentes, mordeu minha mão em vários lugares.”
As imagens mostram que, logo depois, o condutor desceu da moto, deu uma rasteira em Marília e passou a chutar a vítima caída no chão. “Fui sentir dores só na internação, na UTI, quando saí da fase de pânico.”

‘Comecei a sentir gosto de sangue na boca’
Os bandidos só foram embora quando viram que não conseguiriam levar nada. Um vizinho, que possivelmente acordou com os gritos, assobiou para assustá-los. Marília se levantou e, ainda anestesiada, andou como pôde até em casa.
Inicialmente, ao relatar o caso para o marido, ela disse que estava bem. “Mas aí comecei a sentir gosto de sangue na boca.”
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Eles foram às pressas para um hospital da região, onde constataram sete fraturas: ela tinha machucado também três vértebras da coluna, além de quatro costelas. “Duas tiveram fraturas multifragmentadas, esmigalhou o osso.”
Por causa do pulmão perfurado, ela ficou internada três dias na UTI, recebendo morfina para controlar a dor. “Era muito forte”, diz. Em casa, ainda chegou a ter falta de ar. “Tive que mudar as medicações, depois entrei com fisioterapia.”
‘Minha família entrou em pânico’
A médica conta que, mais que a dor física, o ataque deixou uma fissura na relação que ela tinha com o exercício físico. “É impactante para uma pessoa acostumada a correr todo dia parar de correr. E eu tive de parar tanto pelas fraturas como pelo problema pulmonar”, afirma Marília.
Segundo ela, quando concluir a fisioterapia, a ideia é voltar gradativamente à corrida todos os dias, mas não mais antes do nascer do sol.
“Esse horário era bom porque meu dia rendia muito. Eu chegava da corrida, já fazia café, tomava banho e ia trabalhar, seja dentro de casa (com atendimentos via telemedicina) ou fora”, afirma. Após sofrer a tentativa de assalto, ela parou com atendimentos externos por um tempo.
A médica afirma que, apesar de não ter o costume de levar o celular, a segurança não era uma questão central quando ela saía para correr. “Aqui era considerado um bairro tranquilo, seguro, tem um posto policial perto. Achava que não tinha problema correr nesse horário”, afirma. “Mas agora não posso mais correr quando ainda está escuro. Tenho receio, e a família não quer também.”
Depois que a mãe foi atacada, os dois filhos, também médicos, tentam convencer os pais a se mudarem de lá para um condomínio fechado. Marília e o marido moram lá há mais de 30 anos. “Minha família entrou em pânico”, afirma Marília. “Meus filhos ficaram traumatizados.”
Ela afirma que ainda não cogita se mudar, mas admite conviver com o medo. “Fico pensando se eles (assaltantes) não são vingativos, se não voltar... A gente pensa em tanta coisa.”
‘É triste não ter a liberdade de correr na rua’
Além das lembranças traumáticas, ela ainda sente os sinais da violência no corpo. “Tenho menos fôlego. Se falo muito rápido, tenho um pouco de falta de ar”, afirma. “Tive de fazer um pouco de meditação, arrumar algumas coisas para fazer e ocupar a mente, para não ficar pensando só nisso e não sucumbir, não entrar em depressão.”
Uma onda de solidariedade no bairro, relata, também a ajudou a ter forças. “A comunidade do Parque Continental ficou estarrecida. Todos entraram em contato comigo. Praticamente cada vizinho veio me trazer flor, café da manhã... Me deram muito apoio”, diz. “Nunca tinha acontecido algo com essa brutalidade aqui.”
Dados da Secretaria da Segurança Pública apontam que os roubos no distrito policial do Jaguaré, que atende a região, não subiram: em janeiro, último mês com dados disponíveis, foram registrados 64 casos, ante 66 no mesmo período de 2024. Já os furtos saltaram 20% no mesmo recorte: de 109 para 131.
“É triste não ter a liberdade de correr na rua. Sentia o ar puro, gostava de ver as árvores, as flores, a natureza”, diz. “Você não ter essa liberdade de fazer uma atividade física no seu bairro é triste.”
Marília teve casa furtada há cerca de um ano
Há cerca de um ano, a médica passou por outro episódio traumático: teve a casa furtada quando fez uma viagem. “Fui para Aparecida do Norte benzer meus netos, que são gêmeos, porque eles tinham saído da UTI depois de uma pneumonia forte.” A ausência, porém, foi curta: ela saiu por volta de 12h e retornou às 17h30.
“Quando cheguei em casa, estava tudo de pernas para o ar, tudo arrombado, as roupas de armário no chão e o cofre aberto”, diz ela, que percebeu o sumiço das joias da família. “Levaram tudo.”
Entre as medidas de segurança adotadas, ela afirma que comprou um carro blindado para incrementar a segurança. A médica também tem grades instaladas nas janelas de casa, alarme e cerca elétrica. Além de pagar, junto a outros vizinhos, para um guarda fazer rondas no bairro à noite.
A percepção, segundo ela, é que a criminalidade aumentou. “A gente fica à mercê”, afirma. “É como um colega meu falou: a gente agora é prisioneiro, tem de ficar em casa. Eles (bandidos) é que estão soltos por aí, assaltando.”