As apreensões das chamadas drogas K aumentaram quase dez vezes este ano no Estado de São Paulo em relação ao ano passado. Desde janeiro, apenas as apreensões realizadas pelo departamento especializado da Polícia Civil já somam 113,5 quilos. Em 2022, foram 11,6 quilos de K2, K4 e K9 no Estado, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Outro dado indica o crescimento exponencial no uso dessas drogas em São Paulo. Este ano, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) já atendeu 12 casos relacionados a drogas K em seu laboratório. Em cinco anos anteriores, tinham sido apenas dois casos. “Pode parecer pouco ter 12 casos, mas é um número bem considerável de atendimentos”, disse o coordenador executivo do CIATox-Campinas, José Luiz Da Costa.
O crescimento preocupa porque os canabinoides sintéticos podem causar danos psicomotores graves nos usuários e até levar à morte. As drogas conhecidas como K2, K4, K9 ou ‘spice’ foram introduzidas inicialmente nos presídios, mas se espalharam pelas ruas do Estado. Embora seja chamada de maconha sintética, a K foi criada em laboratório, não vem da planta cannabis sativa e tem efeito até 100 vezes mais potente que a maconha comum.
De acordo com o delegado divisionário do Denarc, Carlos Castiglioni, o crescimento nas apreensões evidencia a expansão no uso da K. “Está aumentando muito, até por ser uma novidade. E também por ser muito potente: uma pequena quantidade é suficiente para o usuário se drogar”, disse. Na capital, a droga se espalhou pela Cracolândia, na área central, e atingiu também as regiões periféricas.
Conforme o delegado, antes concentrada em pontos específicos, a distribuição da K está se ramificando entre os usuários de drogas. “Embora o perfil do traficante seja o mesmo de outras drogas, até então a distribuição era mais restrita. Porém, observamos que essa droga está chegando até aos pontos conhecidos como ‘biqueiras’, junto com maconha, cocaína e crack. Isso acontece principalmente pela curiosidade dos usuários de outras drogas que passam a perguntar ao fornecedor se ele tem a K.”
O Denarc tem focado as investigações nos laboratórios de drogas, as chamadas “casas bombas”. São locais onde os traficantes estocam, preparam e distribuem também outras drogas. Em uma “casa bomba” da capital, em setembro, aconteceu a maior apreensão de drogas K de que se tem notícia no País. Foram recolhidos mais de 47 quilos do entorpecente em um único local.
Embora todas as drogas sejam nocivas, essas drogas sintéticas são especialmente perigosas, segundo o delegado, justamente porque não têm uma fórmula definida. “A produção é muito amadora e quem produz coloca o que vem à cabeça. Geralmente são usadas substâncias com alto potencial de dano à saúde dos usuários. Sabemos que muitos usuários de crack passam a consumir também as drogas K para rebater os efeitos desse entorpecente. É uma droga de baixo custo, o que favorece a disseminação.”
PF investiga quadrilha
A Polícia Federal investiga uma quadrilha que atua na fabricação e distribuição da droga conhecida como Special K, em Bauru, no interior de São Paulo. Na sexta-feira, 27, agentes cumpriram seis mandados de busca e apreensão em endereços da cidade.
Foram apreendidos frascos de medicamentos usados na fabricação da droga, aparelhos celulares e documentos. Conforme a PF, as apreensões vão subsidiar um processo judicial que tramita na Justiça de Bauru com foco na atuação da quadrilha.
A Special K resulta do processamento da cetamina ou ketamina, uma droga psicodélica com ação anestésica que tem uso autorizado apenas em ambiente hospitalar. A medicação foi desenvolvida para induzir ou manter anestesias e controlar dores fortes, mas passou a ser utilizada ilegalmente como uma droga de efeito intenso e dissociativo. O anestésico tem também emprego veterinário em cavalos.
Das cadeias para as ruas
Em São Paulo, a droga surgiu nos presídios e foi usada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) para “testar” os efeitos da substância entre os próprios presos. Especialistas apontam que, entre os efeitos causados pela K, estão a dependência, aumento na frequência cardíaca, tendência à depressão, ansiedade, paranoia, alucinações e convulsões. O usuário pode ter também ataques de raiva e agressividade, podendo ferir as pessoas que estiverem próximas.
As drogas K começaram a ser produzidas a partir de substâncias semelhantes a sais de banho trazidas ilegalmente da Europa, Ásia e norte da África. No Brasil, elas são “cozinhadas” em laboratórios clandestinos, como os usados para o preparo de outras drogas, e se transformam em um líquido geralmente incolor. Essa substância, contendo princípios ativos com potência maior que a de outras drogas, é borrifada em papéis ou material vegetal, como ervas.
A droga geralmente é fumada na forma de cigarro. “É uma droga complicada porque nunca se sabe ao certo sua fórmula. Quando o traficante não tem determinada substância, ele coloca uma outra qualquer, inclusive ácidos. Acaba ficando difícil de detectar e o risco para o usuário, geralmente uma pessoa vulnerável, também aumenta muito”, disse Castiglioni.
De acordo com o coordenador executivo do CIATox-Campinas, José Luiz Da Costa, que é também pesquisador e especialista em toxicologia, não se deve confundir droga K com maconha. “São substâncias que agem no cérebro de forma parecida com o THC (tetrahidrocanabinol) da maconha, mas não tem nada a ver com a maconha. Aliás, não existe maconha sintética”, disse.
Conforme o pesquisador, as drogas K (K2, K4, K9) possuem composição molecular variada e apresentam potências, efeitos e toxicidades diferentes dos canabinoides naturais. O que as torna novas é o fato de muitas não terem suas moléculas descritas quimicamente, dificultando sua inclusão na legislação antidrogas e seu combate.
“O desafio para a química forense é a identificação da substância, já que o perito criminal precisa caracterizá-la quimicamente para informar à autoridade policial. Isso não é simples de ser feito, mas estamos avançando”, disse.
Essas substâncias são frequentemente associadas a produtos à base de plantas, em que são adicionadas ao material vegetal por imersão, pulverização ou na forma de pó cristalino, mas também são encontradas impregnadas em papel ou selos do tipo LSD. No Brasil, essa última forma aparece com frequência em papéis apreendidos em prisões, principalmente no Estado de São Paulo – as primeiras ocorrências datam de 2016.
Além de São Paulo, outras unidades da federação já registraram apreensões, conforme dados do Comitê Técnico do Sistema de Alerta sobre Drogas (SAR). Entre 2020 e 2023, houve casos nos Estados do Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima e Tocantins. No Paraná, houve 52 requisições periciais para canabinoides sintéticos e, no Rio, 39 pedidos.
Festivais de música eletrônica
Desde 2021, o CIATox-Campinas vem detectando canabinoides sintéticos em amostras biológicas de pacientes. Os casos mais típicos são considerados de gravidade moderada a severa e envolvem o consumo de K2 ou K4 pelo paciente, com hepatites graves após uso de drogas sintéticas e “mulas” com canabinoides, detidos no sistema prisional.
Um estudo realizado por pesquisadores da Unicamp mostrou que 63% das pessoas que consomem drogas em festivais de música eletrônica, as chamadas raves, em vários Estados do Brasil não sabem que substâncias estão usando. Os pesquisadores visitaram 13 eventos em São Paulo, Minas Gerais e Bahia coletando saliva de voluntários. Em 39,2% das amostras, foram encontradas substâncias de drogas K, embora apenas 5% dos voluntários tivessem confirmado o uso delas.
A pesquisa faz parte do projeto ‘Baco’, desenvolvido pela Unicamp em convênio com a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), a partir do trabalho de doutorado de uma aluna da Faculdade de Ciências Médicas da universidade.
Outro programa, o Inspeqt – Investigação de Novas Substâncias Psicoativas em Química e Toxicologia Forense – conta com a participação de pesquisadores da Unicamp e da Universidade de São Paulo (USP), além de peritos criminais federais e dos Estados de São Paulo e Sergipe, para analisar e descrever as novas drogas em seus aspectos químicos, além de testar seus efeitos toxicológicos no organismo.
Financiado pela Capes, o projeto já tem fornecido subsídios aos órgãos de segurança pública para a identificação dos novos entorpecentes. Um dos componentes que aparecem nas análises, o canabinoide ADB-Buticana, foi identificado em 14 laudos elaborados pela perícia criminal federal em drogas apreendidas pela Polícia Federal, indicando a circulação da droga no país.
Mortes suspeitas
Só na capital paulista foram registradas este ano dez mortes suspeitas de intoxicação por canabinoides sintéticos – as chamadas drogas K. No ano passado, houve um único registro. Até outubro, foram registradas 853 notificações de casos suspeitos de intoxicação por essas drogas, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Em 2022, houve 98 notificações.
Os números são tanto de equipamentos de saúde públicos quanto privados. Em julho, a SMS publicou nota técnica com orientações sobre a abordagem das novas drogas junto à população infanto juvenil na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do município.
Como surgiu
Na década de 1980, o químico norte-americano John Huffmann sintetizou canabinoides na busca de medicamentos para aliviar dores de pacientes. A fórmula dos compostos foi divulgada em artigos e revistas. Em 2008, esses compostos foram identificados em um laboratório forense da Alemanha. O produto chegou a ser comercializado com o nome de ‘spice’ (tempero).
Em 2018, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos alertou para os riscos significativos à saúde de canabinoides sintéticos que continham a substância brodifacoum, usada em veneno de ratos, adicionada à fórmula por se acreditar que prolonga os efeitos das drogas.
Ações para controlar a expansão
A Senad, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, desenvolve ações para controlar a expansão das Novas Substâncias Psicoativas (NSP) no País. Uma delas, o Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR) permite a identificação mais rápida dos casos e das substâncias utilizadas, através do acesso aos serviços de saúde, onde os casos são atendidos. Conta ainda com a colaboração de instituições científicas e universidades.
O órgão também difunde informações e alertas à sociedade sobre a chegada de novas substâncias psicoativas. A Senad abriu 10 mil vagas para treinamento de peritos criminais e profissionais de saúde sobre as novas drogas. “As ações são fundamentais no atual cenário, uma vez que os dados da Senad mostram aumento significativo nas apreensões de canabinoides sintéticos nos últimos anos no Brasil”, disse, em nota.
Formas de apresentação das drogas K:
- cigarro;
- spray;
- tiras orodispersíveis (selos, tirinhas de “doce”);
- comprimidos;
- incenso;
- sachês e pot-pourri de ervas;
- sais de banho;
- borrifadores líquidos;
- papéis (sedas, folhas embebidas);
- aromatizador de ambiente;
- pó;
- cristal;
- goma de mascar;
- essência de vape (cigarro eletrônico).
Efeitos de intoxicação pelas drogas K:
- Vômito e salivação excessiva;
- Sonolência, desorientação;
- Dificuldade de respirar;
- Desmaios, convulsão;
- Sinais evidentes na boca ou na pele decorrentes do contato ou ingestão de substâncias químicas ou tóxicas;
- Cheiro característico de algum produto na pele ou roupa;
- Alterações súbitas do comportamento ou estado de consciência;
Outros sintomas residuais e crônicos de uso:
- Ideação suicida;
- Paranoia;
- Delírios;
- Alucinações
- Agitação;
- Compulsões;
- Ansiedade;
- Pânico;
- Agressividade;
- Isolamento social.
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo
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