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As tragédias de 1967

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Atualização:

"A lama vermelha, amolecida por três dias de chuva forte, deslizou sobre a cidade, encobriu as casas ao pé da serra, por cima vieram árvores inteiras, derrubando paredes e se amontoando na estrada. Dez minutos depois Caraguatatuba quase não existia mais." Assim o jornalista Gabriel Manzano abria a reportagem publicada pelo Jornal da Tarde em 20 de março de 1967, quando foi enviado para cobrir a catástrofe que se abateu sobre a cidade do litoral paulista. Com 436 mortos - segundo a Organização das Nações Unidas -, o deslizamento foi o quarto maior desastre natural da história do Brasil.

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A falha na vegetação da Serra do Mar na região de Caraguatatuba, onde houve o deslizamento, é uma cicatriz que persiste. Nem quatro décadas foram capazes de apagar. A natureza também sabe ser cruel.

Cidade morta. Naqueles dias, para os caraguatatubenses era como se o mundo tivesse acabado. Sem exagero. Todas as 240 lojas da cidade fecharam suas portas, num luto forçoso e espontâneo. A luz acabou. Comida e gasolina foram racionadas. O necrotério municipal se transformou num pulsante centro nervoso, tamanho o número de corpos que não paravam de chegar. No horizonte, o mar também era um retrato da tragédia: cada onda que quebrava trazia junto um cadáver. Caraguatatuba fora tomada de surpresa pela morte.

Tão de surpresa que Doutor Nakamura, médico da Santa Casa de lá, viu seu paciente morrer na mesa de cirurgia. Ele operava uma úlcera supurada. Caiu a tromba d'água, o Rio Santo Antônio subiu. O aguaceiro invadiu o hospital. Doutor Nakamura não parou a operação. A água subindo. Doutor Nakamura concentrado. A água subindo mais, já em seus joelhos. Ele só parou a cirurgia quando percebeu que o paciente já não respirava mais.

Tão de surpresa que Severino - coveiro identificado pelos jornais da época somente pelo primeiro nome, e nome que nos lembra as mortes e vidas severinas pintadas pelo poeta João Cabral - se queixava que o seu coração não dava para essas coisas, não. Antes, ele nunca havia enterrado mais do que três pessoas num único dia. Aí foram 100 de uma vez. Mais da metade deles sem nome, sem nada. Quinze em cada vala comum.

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Mas a solidariedade não tardou. O ser humano, assim como a natureza, é cruel. Mas na hora do aperto, sabe-se lá como, consegue estender mãos, braços, bolsos, gestos. Donativos de São Paulo chegavam em três aviões e de navio, via Porto de Santos. Caraguatatuba não tinha roupa. Caraguatatuba tinha fome. No dia seguinte à tragédia, ali estavam remédios, 20 sacas de feijão, 450 latas de leite em pó, 300 cestas básicas, umas 100 latas de biscoito...

Rio. A catástrofe de Caraguatatuba veio dois meses depois de uma tragédia carioca: em 23 e 24 de janeiro daquele mesmo ano de 1967, fortes chuvas no Rio deixaram um saldo de 785 mortos.

O toró atingiu o Vale de Laranjeiras e áreas vizinhas - Silvestre, Catumbi, Rio Comprido, Santa Teresa, Glória e Flamengo. Humaitá, Botafogo e parte de Copacabana também foram atingidos, em menor grau. Casas foram completamente destruídas. A Rua Itamonte desapareceu - restando apenas uma profunda cava. Carros, paralelepípedos, meios-fios e até mesmo os muros das casas foram tragados pela força das águas. Na Rua Belizário Távora, dois prédios foram arrasados. Na Tijuca, 20 ônibus e 19 outros veículos foram carregados pela correnteza. O Rio virou mar. Um mar sujo e impiedoso.

Versão ampliada de texto publicado originalmente na edição impressa do Estadão, dia 19 de janeiro de 2011

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