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Ela foi lavadeira, hoje é advogada e empresária do Racionais: ‘Tenho de provar que não sou sombra’

Eliane Dias aprendeu a ler aos 9 anos e entrou tarde na escola porque precisava cuidar da irmã caçula e ajudar a mãe; na Assembleia, coordenou frente de combate à discriminação racial

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

Eliane Dias fixou seu diploma de bacharel em Direito pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul e o certificado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na parede que fica atrás de sua mesa de trabalho. É a primeira coisa que a gente repara quando chega ao escritório no Capão Redondo, zona sul de São Paulo.

Empresária Eliane Dias foi criada na Pedreira, zona sul de São Paulo Foto: Taba Benedicto/Estadão

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A localização do quadro é estratégica. É um orgulho pessoal depois de ter morado na rua, trabalhado como empregada doméstica sem registro em carteira, lavadeira, costureira, babá e cabeleireira. Mas também é uma mensagem antirracista para quem chega.

“No começo, o propósito era provar que eu não era ignorante. As pessoas pensam que as mulheres pretas não têm cérebro, não têm competência e não merecem credibilidade. Eu coloquei o diploma aí para mostrar que as coisas são diferentes.”

O sonho de ser advogada começou quando ela estava zanzando pelas ruas da Pedreira, também na zona sul. Aos 9 anos, ainda não sabia ler. Tinha entrado tarde na escola porque precisava cuidar da irmã mais nova e ajudar a mãe, Maria Aparecida Dias, empregada doméstica e mãe solo, nas tarefas do dia a dia, lavar e passar. Também foi costureira, lavadeira, empregada doméstica (sem registro).

Num raro momento de folga, ela achou no lixo um livro e perguntou para uma vizinha, que era conhecida como “dona Maria do seu Juca”, como a gente podia entender as palavras. O título era de Carolina Maria de Jesus. “Ela me disse que quem entendia as palavras eram os advogados. Foi aí que quis ser advogada”.

Eliane acabou indo além do diploma. Foi a primeira da família a fazer faculdade. No 4º ano da faculdade, prestou concurso para a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, ganhando R$ 350 como estagiária. Chegou à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), onde foi assessora parlamentar da deputada estadual Leci Brandão e coordenadora do SOS Racismo, frente de combate à discriminação racial.

Quando sua carreira deslanchava, ela foi convidada para gerenciar a carreira solo do rapper Mano Brown, seu marido, e, em seguida, do Racionais. Demorou seis meses para dizer “sim”. “Era um risco porque a sociedade e o mundo da música são racistas e machistas. Hoje, sou respeitada no mercado, mas paguei um preço alto. Eu tinha de fazer o dobro para ser reconhecida”, confessa.

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Além de gerenciar a carreira do maior grupo de rap do País, Eliane é CEO da produtora musical Boogie Naipe, algo como “postura independente”, unindo “boogie”, estilo que surgiu do blues, e “naipe”, gíria para estilo original.

Em 2017 e 2021, foi reconhecida como empreendedora musical do ano pela premiação Women’s Musical Event Award (WME) by Music2! O mundo da música se mostrou desafiador, mas de uma maneira diferente. “Eu tenho de provar que não sou a sombra do Mano Brown. Parece que, para mim, as coisas são mais difíceis”.

A advogada também é líder antirracista, empreendedora, mãe de dois filhos, Jorge e Domenica, e dona de casa – ela gosta de sublinhar. Também revigora a tradição de mulheres negras que fazem acontecer. “Sou mais uma mulher que abriu mão da sua própria carreira para cuidar da vida de outro”.

Durona, como ela própria se define, Eliane foge de pouquíssimas perguntas. “Ela não gosta de falar a idade. É imprescindível?”, pergunta a assessora.

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O Estadão encontrou a advogada num dia em que as coisas estavam meio fora da ordem. Ela estava no meio da pintura da casa, no bairro do Morumbi, e alguém tinha batido no seu carro, nada grave, mas precisou de reparo na oficina. Ela tem um Nissan Sentra 2023 e confessa que é apaixonada por automóveis desde que trabalhou numa concessionária.

O carrão, no entanto, tem sido motivo de dores de cabeça. Nem sempre os manobristas aparecem para estacioná-lo – segundo ela, a razão é o racismo. Num episódio recente, ela chegou ao um hotel de luxo, abaixou o vidro e ficou esperando que a rodinha de profissionais se desfizesse para que um deles fosse buscar o veículo.

Ela contou um minuto no relógio. Como ninguém veio, ela deixou o carro na entrada e levou a chave. “Sinto racismo todos os dias. Ninguém tem coragem de falar abertamente, mas são pequenos fatos, como esse, que a gente percebe”.

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Nas múltiplas barreiras impostas às mulheres, Eliane precisou superar obstáculos até dentro de casa. A decisão de fazer faculdade ganhou força depois que o marido não quis que ela participasse de uma viagem internacional dos rappers décadas atrás.

“Percebi que o Pedro Paulo estava crescendo e eu estava ficando para trás. Na volta da viagem, eu falei ‘você vai pagar minha faculdade’. Hoje, sou independente e digo ‘não’, quando necessário”. Sim, ela chama o Mano Brown de Pedro Paulo.

Voltando ao dia atribulado. Eliane estava retomando o fôlego depois de ter lançado a coleção de roupas da Yebo, marca de streetwear feminino que desenvolve ao lado de sua filha Ayomi Domenica, fundadora e diretora criativa da marca.

A filha, aliás, foi o ponto de partida da entrevista. Eliane contou sobre os prêmios que a filha havia recebido como atriz com o filme Levante, exibido nas mostras paralelas do Festival de Cinema de Cannes, na França, em 2023.

Eliane também estava preparando a 2ª edição da Boogie Week, evento cultural de uma semana para garantir visibilidade às produções de pessoas pretas, e a estreia do documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, na Netflix, sobre os mais de 30 anos de carreira do grupo. “Estou sempre fazendo três ou quatro coisas ao mesmo tempo”.

* Este texto foi produzido em parceria com a Associação Nacional dos Advogados Negros (Anan).

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