O advogado Candido Prunes, de 63 anos, queria descanso quando chegou em casa. Ele tinha acabado de passar por um dia exaustivo de trabalho. Assim que pegou no sono, um barulho ensurdecedor veio da janela do quarto. Começava por volta de 2 horas da madrugada da quarta-feira, 12, a obra de reparo do asfalto na Rua Basílio da Gama, perto da Praça da República, no centro de São Paulo.
“Trabalhei o dia todo. A última coisa que queria fazer era ligar para reclamar: esses canais de atendimento levam um tempo enorme. Então só esperei (o barulho cessar)”, disse. Obras de tapa-buraco, como essa na República, de reforma e de recapeamento costumam ser reivindicadas pelos paulistanos que reclamam de ruas esburacadas. Mas, quando são feitos, tiram o sono da vizinhança.
Na cidade, 904 trechos de ruas e avenidas foram recapeados em diferentes regiões nos últimos dois anos, a maioria de noite ou até de madrugada. São quatro neste momento, mas em março chegaram a ocorrer mais de 200 recapes de forma simultânea. Entre as vias já contempladas, estão Avenida Paulista e Rua da Consolação, no centro, e as obras devem se estender até dezembro.
Pré-candidato à reeleição, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) anunciou em junho de 2022 o que a gestão se refere como “maior programa de recapeamento da história” da capital, com investimento previsto de ao menos R$ 2,5 bilhões no asfaltamento de vias pela cidade.
A iniciativa é alvo de inquérito do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) por suspeita de remanejamento ilegal de R$ 546 milhões de diversos órgãos municipais para financiar o programa.
A Prefeitura diz que “todos os remanejamentos orçamentários foram feitos dentro da legalidade” (leia mais no final) e que as reclamações de barulhos das obras têm diminuído, sem detalhar números. A pasta diz ainda que, segundo o Programa de Metas 2021-2024, a expectativa é atingir 20 milhões de m² de recapeamento, micro pavimentação e manutenção de pavimento rígido.
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Até o momento, 15 milhões de m² foram recapeados, o que corresponde a 3/4 do previsto. Entre as vias que passam por obras neste momento, segundo mapeamento da gestão municipal, estão as avenidas Vital Brasil e Professor Francisco Morato, ambas no Butantã (oeste). Até a última semana, estavam também endereços como a Rua Tutoia, no Paraíso (sul).
A região dos Jardins é uma das que reúnem reclamações de moradores. “De seis meses para cá, tivemos aumento significativo nas obras de rua, principalmente no período noturno”, diz o presidente do Conselho de Segurança (Conseg) Jardins, Rodrigo Salles. Ele afirma que, por se tratar de área com grande circulação, a maior parte das obras públicas da região é feita à noite.
“Isso faz com que o morador que já tem incômodo diurno com obras da construção civil e até mesmo ruídos urbanos, à noite, no horário de descanso, perca o sono com obras públicas”, diz Salles. Segundo levantamento feito por entidades da região, hoje há cerca de 30 edifícios em construção nos Jardins.
“Por ser uma região movimentada, a gente não consegue fugir das obras públicas à noite, mas seria interessante ter melhor programação disso; que os vizinhos fossem avisados previamente, com 15 dias antes, até para as pessoas poderem saber o que está acontecendo”, afirma.
Ele diz que os horários das obras de recapeamento, por exemplo, costumam ser imprevisíveis. “Às vezes começa às 22h e vai até 2h. Às vezes começa meia-noite e vai até 6h da manhã”, exemplifica.
Segundo Salles, as intervenções geraram queixas ao Conseg tanto de moradores mais próximos do bairro do Paraíso, perto da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, quanto de vizinhos de Pinheiros, nos arredores da Rebouças.
Cartão-postal da cidade, a Avenida Paulista também tem moradores insatisfeitos. Com 2,7 quilômetros de extensão, a via passou por recape por um período de ao menos dois meses. A Prefeitura afirma que a execução das obras dura, em média, 90 dias – a sinalização feita pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) é o último passo.
“A qualidade de vida foi prejudicada, já que normalmente a avenida e entornos à noite são muito silenciosos, ao contrário das impressões de quem não conhece aqui bem”, diz a advogada Raphaela Galletti, de 63 anos. Além de residir na via, ela é presidente do MovPaulista, iniciativa de moradores e comerciantes da área, e diretora de uma empresa que gere condomínios na região.
Segundo ela, quando as obras de recapeamento chegaram à Paulista, no começo deste ano, as reclamações de moradores em relação a barulhos de noite se multiplicaram em regiões como Consolação e Cerqueira César. Eram vídeos e mais vídeos compartilhados nos grupos de WhatsApp.
Raphaela afirma que boa parte das queixas de barulho se deu por obras no cruzamento da via com a Haddock Lobo e perto da Rua Teixeira da Silva. “Alguns moradores ficaram extremamente irritados, como consequência da falta de bom sono e perturbação (por causa) do barulho”, diz. “Obras na Av Brigadeiro Luís Antônio ocorreram simultaneamente, piorando essa região.”
Nas redes sociais, se repetem desabafos de moradores de outras regiões, como da Vila Madalena, zona oeste, e no centro, onde a circulação de pessoas dificulta obras diurnas. “São 03:41 da madrugada e não consigo dormir”, escreveu uma usuária do X (antigo Twitter). Pelo mapa divulgado pela Prefeitura, é justamente o centro expandido o local de maior incidência das obras de recape.
“Enquanto o resultado de benefício à população não chega, o que chega muito rapidamente é o transtorno”, diz Marco Antônio Teixeira, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Essas obras em série, segundo ele, costumam criar a impressão de que as intervenções são feitas às pressas e de que se faz o recape até em vias onde não seria necessário.
Conforme a Prefeitura, todas as vias foram escolhidas a partir de mapeamento feito por programa tecnológico desenvolvido em parceria com professores da Universidade de São Paulo (USP).
As obras de recapeamento ocorrem principalmente à noite, conforme a pasta, seguindo orientações da CET. O Município informa que, além das intervenções de recape, há 195 obras sendo realizadas à noite na cidade pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB) e a SPObras, como recuperação de pontes e viadutos.
“As equipes são treinadas pelas empresas para gerar o menor ruído possível e transferem para o dia todo o trabalho que pode ser executado sem prejudicar a trafegabilidade, como os serviços de guias e sarjetas”, diz a pasta.
Segundo a Prefeitura, os Termos de Permissão de Ocupação do Viário (TPOV), emitidos pela Gerência de Obras da CET, dão as diretrizes para a ocupação das vias por obras de infraestrutura urbana, com o objetivo de promover a segurança e a fluidez do trânsito.
“Para a emissão do termo, são levados em consideração, por exemplo, o impacto nos deslocamentos no transporte coletivo, na circulação de veículos e na mobilidade, bem como na ocupação do solo em determinada via e os equipamentos nela instalados, como área de hospitais. É levado em consideração também o método construtivo empregado nas intervenções”, diz a pasta.
“As diretrizes indicam com maior frequência a utilização das vias no período noturno, finais de semana e feriados, em razão das características de tráfego de cada uma.”
A Prefeitura afirma que, para minimizar transtornos sonoros em casos específicos (como em áreas de hospitais), o termo permite o uso de equipamentos mais ruidosos nos horários de “entre pico”, com menor fluxo de veículos durante o dia.
“Com as medidas aplicadas, reclamações sobre obras em via pública têm diminuído”, diz a pasta. As queixas podem ser feitas pelo pelo telefone 156, pelo Portal SP156 ou nas Praças de Atendimento das Subprefeituras.
Além da gestão municipal, o próprio governo do Estado e concessionárias de diferentes setores também realizam intervenções no período noturno.
Por lei, apenas obras privadas não podem ocorrer depois das 19 horas, em projeto aprovado em 2021 na própria gestão Nunes. As públicas até podem, mas, com exceção das emergenciais, devem manter os ruídos abaixo de 59 decibéis, o equivalente a uma conversação alta.
A Enel, responsável pelo fornecimento de energia elétrica para moradores da capital, realiza agora três obras de grande porte de enterramentos durante a noite na cidade: na Av. Imirim, zona norte, na Praça João Beiçola e em Cidade Jardim, na sul. Melhorias desse tipo são vistas como necessárias para evitar quedas de energia, a exemplo do apagão no fim do ano passado. Em 2024, a concessionária já concluiu 113 obras no período noturno.
MP vai investigar Prefeitura por obras de recapeamento
No caso do programa de recapeamento, a Promotoria instaurou na última semana inquérito civil para investigar a suposta prática de improbidade administrativa na gestão Nunes no remanejamento de recursos para obras desse tipo na cidade.
A investigação atende a um pedido da Bancada Feminista do PSOL, partido de Guilherme Boulos, provável adversário de Nunes na disputa eleitoral de outubro. O mandado coletivo acusa a Prefeitura de remanejar ilegalmente R$ 546 milhões de diversos órgãos municipais para financiar o programa de asfaltamento.
A Prefeitura afirma que todos os remanejamentos orçamentários foram feitos na legalidade: “A Secretaria Municipal da Fazenda informa que a abertura de crédito adicional suplementar de dotações, mediante recursos orçamentários reduzidos de outras dotações, é prevista na Lei Federal 4.320/1964 (art. 43) e, no Município, é autorizada pela Lei Municipal 17.976/2023 (Art. 40) e pela Lei Municipal 18.063/2023 (art. 7º), observando-se os limites estabelecidos pelos referidos dispositivos e os procedimentos estabelecidos no Decreto Municipal 63.124/2024 (art. 22).”
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